Querido Júlio, envio-te as memórias do homem que tinha medo de amar.
«Conheci aquela miúda há muitos anos e logo me apaixonei pelas suas formas roliças e por aquele sorriso endiabrado. Toda ela sorria e o brilho dos seus olhos parecia querer desvendar os meus segredos mais íntimos. Tentei evitar o feitiço refugiando-me noutros colos, mais disponíveis e levianos, para que aquela obsessão acalmasse. Foi impossível porque quando encontramos uma mulher-anjo é muito difícil ficar indiferente. Existe uma espécie de força inexplicável que nos impele na sua direção. É assim que a recordo. Sei agora, com 80 anos, que Deus às vezes nos coloca uma mulher propositadamente no nosso caminho, para nos tentar e desafiar a sermos felizes. Uns aproveitam, outros deixam escapar a oportunidade, como eu.
Nunca conheci ninguém como ela, mas por alguma razão, nunca soube agarrá-la. Quando a conheci tentei inibir-lhe os movimentos e ela fugiu: disse-me que não queria ficar oprimida dentro de uma gaiola. Eu queria o “já, e o agora” e ela queria “o mundo”. O ”já” e “o mundo” não são compatíveis e, por isso, ela foi-se embora. Tentei convencer-me de que tinha sido eu a deixá-la ir, mas mais tarde apercebi-me do contrário. Livre e distante, ela sempre soube demonstrar o que era amar profundamente. Eu, apesar da idade, sempre achei que amor era dependência, risco calculado e disciplina. Acho que herdei esta forma de amar dos meus pais. Foi por isso que, durante tanto tempo, aceitei a minha vida como se fosse verdadeiramente feliz.
Todos os “alguéns” que decidem como eu, têm vidas como a minha. Sei-o bem porque conheci alguns, que vão mantendo as suas vidas dentro das fronteiras do protocolo, regando-as com “colos disponíveis e levianos” que fazem acreditar temporariamente que o “mundo gira ao contrário e que os rios nascem no mar”.
Da primeira vez fica-se inebriado, excitado e convencido que é só aquela vez, que não tem importância, que é só sexo, nada mais, mas pouco a pouco apercebemo-nos de que são apenas meros subterfúgios para evitarmos viver em pleno. Nem estamos num lado, nem no outro. Mas Deus talvez achasse que eu merecia uma segunda oportunidade, voltando a colocá-la no meu caminho. E eu, ingrato, estraguei tudo de novo. Ela deu-me mais do que eu fiz por merecer. Deu-me o céu, as estrelas e todo o firmamento, deu-me o seu delicioso corpo, a sua alma generosa e o coração a transbordar. E eu não soube aproveitar. Refugiei-me nas minhas rotinas, culpas e obediências e voltei a deixar escapar aquela mulher-anjo. Sei que vivi com ela o que só é dado a provar aos escolhidos e não fui digno da sua dádiva. Porquê? Porque sempre tive medo de a amar.
No café onde me encontro agora, ouvi o empregado sussurrar a uma cliente: “Vem cá há muitos anos, dantes vinha sempre com a mulher, mas ela faleceu. Agora continua a vir sozinho todos os sábados: devia amá-la muito.”
Foi então que a cliente aproximou-se de mim e, por baixo do seu chapelinho de pelica, sorriu.
Deus, estás aí?
[Publicado originalmente na edição de 27 de março de 2016]