«Olá, eu sou o Fernando, tenho 73 anos e não gosto do Natal.» Isto era uma boa maneira de começar. Uma belíssima maneira de começar. Se houvesse grupos de apoio para pessoas que não gostam do Natal, isto era uma excelente forma de entrada dos novos membros. E depois cada um logo falava de si e dos seus problemas e das razões que os levavam a detestar a altura mais parva do ano. Isto era uma bela ideia, sim. Como é que nunca ninguém se lembrou disto? Se calhar já se lembraram e eu é que não sei. Estou para aqui feito parvo e rezingão a lamentar a minha sorte e às tantas a coisa já existe. E poupava-me semanas de azia e mau feitio.
É todos os anos a mesma história. Sempre, sempre. Passo onze meses a dizer que não volto a fazer isto e mais quinze dias a mentalizar-me de que este ano é que é. E depois, na reta final, acabo por ceder novamente. Ou porque são os remorsos, ou porque é a pressão dos filhos, ou porque os netos fazem questão, ou porque as noras telefonam a pedir para fazer as filhoses. Ou porque os miúdos fazem aquela chantagem emocional que nunca lhes perdoo mas acabo por desculpar sempre. O que é que um gajo vai fazer? Se não gostassem de mim não insistiam, se isto não fosse importante para eles a questão nem se punha.
Mas custa. Custa-me tanto. Custa-me este mundo e o outro e só eu sei onde vou buscar forças para os dias que aí vêm. Afinal, que idade é que um fulano precisa de ter para poder dizer, sem remorsos, que não gosta do Natal, nunca gostou, não liga um charuto à data e só a celebra para fazer os outros felizes? Até que idade tenho eu de aturar isto tudo, raios me partam? São as compras, os embrulhos, a azáfama, a confusão, os encontrões, a parvoeira que parece contagiar toda a gente durante duas ou três semanas, para depois se consumir tudo num fósforo e em dois dias comemos e bebemos como uns abades gordos, fico com o colesterol avariado, a casa de pantanas e a depressão mais acentuada.
Já não sou um garoto, são 73 anos de vida. E 48 casado com uma pessoa que vivia para a época e nunca me deixou admitir que isto não me diz coisa nenhuma. Quando a minha mulher era viva, gostasse eu ou não, levava com o Natal e a árvore e as bolas e as fitas e o presépio e o musgo e os embrulhos e os postais e o bolo-rei e a missa do galo e o madeiro. Quisesse ou não, isso não era ponto que admitisse discussão.
Mas ela já não está cá. E eu pensei que finalmente ia poder mandar às urtigas aquela fantochada toda, por muito que os filhos gostem, tenham paciência, deixem-me cá em paz e vou mas é enfiar-me no carro e dar um passeio por uns dias para fugir disto tudo. Tivesse eu dinheiro e enfiava-me num avião para um sítio quente e punha os pés de molho. Mas já sei que vai cair o Carmo e a Trindade e os filhos vão fazer um banzé dos diabos, ai pai que não está bem, onde já se viu passar o Natal longe da família, tanta gente sozinha a lamentar a solidão e o pai a querer estar só com os botões. Venha lá e festejamos juntos, como se a mãe estivesse viva.
E só eu sei como isso me custa. Como isso me faz mal. Como isso me traz memórias que eu quero arrumar. Deus a tenha e faz-me falta como o pão para a boca e por ela até aturava o Natal. Aliás, se ela me pedisse para celebrar o Natal duas vezes por ano, eu celebrava. Se isso a trouxesse de volta, podia ser Natal na Páscoa e nos Santos e no fim do verão. Se ela voltasse e me pedisse para celebrar o Pai Natal e o Menino Jesus e o Gaspar, o Baltazar e o Belchior e mais a vaca e o burro, eu celebrava tudo. Mas ela não volta. Ela não volta e agora estou para aqui armado em esquisito a lamentar a minha sorte por ter uma família que gosta de mim e quer que eu faça filhoses e receba presentes.
Estou a queixar-me de barriga cheia, eu sei. Armado em ingrato. Mas é que me custa mesmo. Custa-me tanto. Um tipo já devia saber. E dar-se por convencido. Por vencido, mesmo. Não vale a pena remar contra a maré, mais vale assumir a coisa, fechar os olhos e engolir de um trago uma pastilha que se toma uma vez por ano, não gostamos mas é a bem da saúde da família. Era pior se fosse uma daquelas que às vezes tenho de pôr debaixo da língua, sabem mal para caramba. Faltam três semanas para o Natal e este vai ser igual aos outros. Com a família que está cá e gosta de mim. Mas qualquer dia piro-me daqui para fora. Não vai ser o Natal mais feliz da minha vida. Mas vai ser o mais tranquilo.
[Publicado originalmente na edição de 4 de dezembro de 2016]