Da Rússia com amor

Chegou ao Porto em 2013, depois de se ter apaixonado pela cidade no Google. A russa Anka Zhuravleva expõe em todo o mundo, mas garante que nunca mais vai deixar Portugal. O próximo trabalho da fotógrafa é inspirado na primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira. «Podia ter crescido ali, dentro do Aniki Bobó», garante. Será uma exposição sobre uma infância imaginária.

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À entrada da casa há instrumentos de mú­sica. Tecla dos antigos e modernos, analógi­cos e digitais, flautas japonesas e indianas, saxofones e guitarras. E pinturas a óleo. E peças restauradas, personalizadas, trazi­das de viagens. A conversa foi na sala, com vista sobre o Porto. A Sé e os Clérigos, a câ­mara e os telhados do centro histórico, tu­do alcançado da mesma varanda. Serviu vinho tinto e macarons coloridos até ser noite. Ouviam-se gaivotas e gatos, sinos e a história de amor de Anka e Sasha, o segredo russo mais bem guardado da cidade. Ela é fotógrafa reputada, ele é compositor mul­tipremiado. Tombaram à primeira vista um pelo outro e os dois, ao mesmo tempo, pela capital do Norte de Portugal. Em contra ci­clo, trabalham daqui para o mundo. Esta não é uma história sobre economia, é um conto de fadas.

Se a vida não fosse uma sucessão de rasteiras equilibrada com alguns milagres, talvez Anka Zhuravleva, 35 anos acabados de estrear, quase um metro e noventa de altura, cabelo cinza cortado à Principezinho, não fosse quem se tornou: pintora que fotografa com truques de cinema, que usa a câmara para coser os sonhos como quem cria um idioma para comunicar com o mundo e faz do resultado final uma espécie de porta para o país das maravilhas da Alice. O mundo inteiro é do tamanho do seu «olhar de menina de seis anos» e por isso todas as meninas querem ser fotografadas por ela.

Anka, nascida em Moscovo no tempo oprimido da União Soviética, distorce a gravidade e faz as mulheres voarem. Sobretudo as que têm o cabelo a arder. «São as que têm beleza mais frágil.» Como Emmy Curl, alter ego da cantora Catarina Martins, que fotografou na Ponte do Infante, na manhã desta reportagem. Já expôs no mundo todo, de Israel à China. Agora, apaixonada pelo Porto, fotografa incessantemente a cidade e prepara uma mostra sobre a sua infância imaginária a partir de Aniki Bobó, o filme primeiro de Manoel de Oliveira. «Eu podia ter crescido ali, naquele cenário a preto e branco, em que não se sabe dizer o tempo que é», diz num português inatacável aprendido no quotidiano dos dias vividos em Portugal, para onde se mudou em 2013. Explica o que sente com gestos largos e sorrisos rasgados. E sempre com superlativos. «Quando decidimos sair da Rússia, pensámos ir viver para a Grécia. Ou para Valparaíso, no Chile. Queríamos viver num lugar onde não fosse sempre inverno, onde não sentíssemos o peso de Vladimir Putin e onde as pessoas não tivessem medo de sorrir. Encontrámos o Porto no Google Maps e foi decisão automática. » «Fall in love», suspira em inglês. «Sou feliz aqui. Tão feliz.»

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Mas não foi sempre assim. Antes, durante três ou quatro anos, Anka não teve regras. Podia fazer o que quisesse e, por isso, fazia tudo e nada. «Nada tinha importância. Podia beber, não beber, sair, não sair, podia fazer tudo o que quisesse e nada me interessava. Tive situações muito estranhas. Hoje penso: aquilo aconteceu mesmo?» Tinha 17 anos e acabara de perder a mãe, cancro fulminante. Um ano depois, o pai. Filha única, ficou só. «Foram anos complicados, estranhos. Sentia-me sem força, vivia num nevoeiro cheio de dor. Se escolheres não sentir dor, também não vais sentir outras coisas. Durante muito tempo escolhi não sentir nada. Não vivia, sobrevivia. » Respira fundo. «Normalmente, as pessoas têm mais tempo para ficar com a mãe e o pai, não é?»

A mãe era arquiteta, cúmplice do seu mundo interior. «Sempre me deu muitos livros de arte, de pintura, muitos cadernos para desenhar. Toda a minha infância foi assim, com a cabeça cheia de fantasias e a cama cheia de livros.» O pai era dentista, mas apaixonado por fotografia. «Ainda lembro aquele cheiro dos químicos de quando ele fazia revelações na casa de banho. Entrava com um papel branco e aparecia com um retrato.» O pai e a mãe, e a casa de verão dos avós, em Kryokshino, a cem quilómetros de Moscovo, são a sua herança, bússola e baloiço. Ainda hoje, quando sente as pernas da alma a fraquejar, fecha os olhos e viaja até àquela casa de madeira e metáforas, onde a avó cultivava árvores e batatas e morangos e framboesas. «Ali era sempre verão e tudo era tão incrivelmente fixe.»

Quando os perdeu, perdeu-se. Naquele tempo, ela, que «nunca gostou de coisas de moda e maquilhagem», foi modelo. Ela que «tinha todos os complexos de uma menina tão alta, tão magra, tão não bonita», aprendeu, depois de ter sido escolhida entre centenas de meninas russas pelo criador Slava Zaitsev, que afinal era bonita. Posou nua para a Playboy. Foi tatuadora, vocalista de banda rock. Entrou na faculdade de Arquitetura e começou a trabalhar num estúdio de produção de cinema. E um dia, há 14 anos, em São Petersburgo, conheceu Alexander Zhuravlev, compositor e autor de mais de quinhentas peças de música para teatro, cinema e televisão, inúmeras vezes premiado. Sasha, como é tratado, 45 anos, garante que «foi amor à primeira vista». «Foi a primeira vez na minha vida que quis realmente conversar com alguém. Nunca tinha falado tanto», diz ela. Um mês depois, estavam a viver juntos.

Na sua nova vida, ao lado de Sasha, Anka começou a pintar a óleo, a expor e a vender. Até ao dia em que uma das suas coleções, mais de 15 telas, desapareceram de uma galeria para aparecerem mais tarde na casa de um político. «Na Rússia é assim: não vale a pena ir à polícia, perdes tudo e não podes fazer nada», lamenta. Foi a primeira vez que abriram os olhos e perceberam como tudo tinha mudado naquele país. «Toda a gente passou a ter medo, punks e góticos passaram a pentear-se, os artistas a serem emigrantes dentro do próprio país.» Foi a primeira vez que ligaram uma televisão. Para saberem como poderiam sair dali. «Como não havia a perspetiva de que nada mudasse, tivemos de mudar nós. Descobrimos o Porto e toda a nossa vida passou a encaixar como um puzzle. Percebemos que podíamos viver outra vida nesta vida.»

A vida dos dois, de Anka e Sasha, confunde-se. Em 2006, ela substituiu a pintura por fotografia. Ele trocou os teatros pela música clássica indiana. Ele constrói-lhe as câmaras fotográficas de grande formato. Ela ilustra as imagens com as peças dele. Fazem dezenas de quilómetros todos os dias pelo Porto, a passear. Dizem que têm vontade de «agradecer a oportunidade a cada pessoa na rua, a cada gaivota no telhado, ao mar, ao céu». Podem finalmente viajar, viver com pouco dinheiro, ter tempo livre para criar. «Sinto-me como se fosse uma criança e estivesse a sonhar. Tudo aqui me faz feliz e eu não sabia que era possível ser tão feliz.» No Porto, por amor.

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PERTO DE TUDO

Anka e Sasha comportam- se como turistas, mas nunca foram turistas no Porto. E em algumas coisas já pensam como portugueses. Exemplo: durante o São João, a festa da cidade que a torna intransitável, escolhem estar fora. O Porto, define ela, «é a cidade onde toda a gente tem um sorriso para te dar. E está perto de tudo». Anka faz uma caricatura doce. «Estás a sair de casa, fechas os olhos e já está no metro, abres os olhos e estás no aeroporto. Duas horas depois estás num país qualquer da Europa.»

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SASHA, O MÚSICO

Formado na Escola de Música Rachmaninov e na Musorgsky Music College, Alexander Zhuravlev tem um currículo enorme, mas aceita dar aulas pelo salário mínimo. «Importante é criar, não ganhar dinheiro». Sasha, como é tratado, não nega o percurso: «Adquiri mais experiência como compositor entre o fim da União Soviética e o início da era Putin, do que qualquer pessoa na Europa.» Os anos 1990 na Rússia foram «um período de grande criatividade». Mas a chegada de Putin fê-lo perceber que fazer música para rimar com o regime não rimava com ele. Deixou as grandes orquestras, produções e festivais em que somou prémios, trocou de país e começou a tocar música indiana clássica. O Porto permitiu-lhe começar a viajar livremente e, há um ano, na Holanda, conheceu Pandit Hariprasad Chaurasia, maestro de 77 anos que raramente aceita alunos, mas que o aceitou. É o seu guru. Talvez um dia, diz, «haja silêncio suficiente» para o ouvirmos num concerto.