Com 330 mil habitantes, a Islândia é o país menos populoso de sempre a qualificar-se para a fase final de um Europeu. Estreou-se contra Portugal, com um empate. Para muitos, é um milagre: no século XX, os islandeses jogavam com neve até aos joelhos, no meio da lama e até em lotas com caixotes da pesca como balizas. Eram goleados por todos. Em três anos, escalaram 109 lugares no ranking da FIFA. Tudo por causa de um sistema alicerçado em estádios cobertos e em treinadores qualificados. Agora querem mostrar a força dos icebergues.
A partir de setembro, a noite engolia o sol. O Ártico soprava um vento gélido, o chão adquiria uma camada de gelo e do céu caíam farripas de neve. O longo e austero Inverno começava a apoderar-se de Reykjavík, a mais setentrional capital do mundo. Com cinco anos, Pórhallur Dan Johannsson recusava-se a guardar a bola de futebol. A meio da tarde, vestia calças grossas sobre os calções, abrigava-se com um blusão de penas, luvas e gorro e juntava-se aos amigos para mais um treino no Fylkir. «Era extremamente duro», recorda. «Mesmo quando a neve deixava a bola rolar, havia o vento, que nos cortava a pele. O jogo era muito físico porque o terreno não nos deixava driblar», diz o ex-futebolista, duas vezes internacional, atualmente, com 43 anos, comerciante de produtos de limpeza e treinador adjunto do Haukar, do segundo escalão.
Mais para o fim do ano, a bola tinha mesmo de ficar na garagem. «A única coisa que podíamos fazer era correr na neve e, já mais velhos, fazer trabalho de ginásio», diz Johannsson. «Uma vez por semana, tínhamos espaço num campo de futsal com uma dimensão de 25×12 metros. Mas éramos 40 putos, uma confusão.» Ocasionalmente, usavam o campo de cimento da escola, mas o gelo provocava quedas perigosas e muitos ossos perderam ali a virgindade. Em desespero, o antigo médio defensivo, que na sua segunda internacionalização chegou a marcar o brasileiro Kaká, chegou a jogar com os amigos num armazém de pesca, recorrendo a caixotes para fazer as balizas. O solstício de inverno sugava a luz, cobria os relvados de branco e congelava os movimentos. Em dezembro, os rapazes dividiam-se pelos tépidos pavilhões: metade ia jogar basquetebol, os demais para o andebol. «Há um mundo de diferenças no futebol islandês desde que comecei a trabalhar, em 1981, até aos dias de hoje», diz Vidir Sigurdsson, jornalista e editor nas páginas de desporto do jornal Morgunblaoio. «Naquela altura, jogava-se cinco meses e parava-se sete. A liga era amadora e hoje é semiprofissional. Havia 15 profissionais a jogar no estrangeiro, hoje há 85. E os campos? Nos anos 1980, cheguei a ver jogadores a correr com neve pelos joelhos, Eram quase todos pelados, com pisos duros e irregulares. Havia muitas lesões. Em maio, quando a neve derretia, ficavam enlameados, impraticáveis. O primeiro relvado sintético apareceu em 1985, mas tivemos de esperar quase 20 anos para ter as estruturas obrigatórias para praticar esta modalidade na nossa latitude.»
Até este ano, a Islândia nunca tinha conseguido apurar-se para um Campeonato da Europa ou do Mundo em 23 tentativas.
Mas esse era o menor dos problemas: até 1991, em 211 partidas, tinham vencido somente 47 e alguns resultados eram anedóticos, como o 14-2 sofrido perante a Dinamarca, em 1967. O saldo atual entre golos marcados e sofridos é ainda penoso: -261. E o momento mais célebre do futebol nacional aconteceu em 1996, quando, num amigável contra a Estónia, o avançado Eidur Gudjohnsen, então com 17 anos, se tornou o primeiro futebolista a substituir o próprio pai, Arnor Gudjohnsen. A imagem correu mundo e foi o cartão-de-visita de Eidur, que se tornaria o mais lendário atleta do país nórdico ao vencer a liga inglesa pelo Chelsea e sagrar-se campeão europeu com as cores do Barcelona.
Na década de 1990, a Strákarnir Okkar (o nome dado à equipa nacional, que significa «nossos rapazes») evoluiu e chegou a entrar no top 40 do ranking da FIFA, mas há menos de quatro anos estava numa decadente 131ª posição, numa acesa competição com potências como o Luxemburgo e Malta. Com as brilhantes campanhas nas qualificações para o Mundial 2014 e para o Euro 2016, a seleção escalou 109 lugares, atingindo o seu máximo histórico: a 28ª posição. Hoje ocupa o 34º lugar. O feito torna-se surpreendente quando introduzimos na equação o número de habitantes do país – cerca de 330 mil (menos do que o concelho de Sintra) –, com apenas 21 500 futebolistas federados (Portugal tem 160 mil). A Islândia é assim o mais pequeno país a participar na fase final de um Euro ou de um Mundial – o anterior recorde pertencia a Trindade e Tobago, que, com 1,3 milhões de habitantes, marcou presença no Mundial 2006, na Alemanha. Mais: «Se dividíssemos os pontos de cada nação do top 50 do ranking FIFA pelo número de habitantes, a Islândia era destacadamente a melhor seleção do mundo», escreveu Brian Blickenstaff na Vice.
Quando, em setembro de 2015, um empate a zero contra o Cazaquistão deu aos nórdicos o primeiro apuramento para o torneio europeu – deixando-os em segundo lugar no grupo, atrás da República Checa e à frente da Turquia e da Holanda, esta última surpreendentemente arredada do Euro –, o mundo perguntou-se como aquela conquista tinha sido possível numa ilha inóspita, dominada por colossais vulcões e glaciares. «A resposta vem do tempo dos nossos antepassados», responde Arnar Bill Gunnarsson, diretor desportivo da KSÍ (Federação Islandesa de Futebol). «Tal como eles quando quiseram instalar-se nesta ilha, nós tínhamos de nos desenvolver, e isso só era possível de uma forma: vencendo o frio.»
Estádios cobertos e treinadores encartados
O escocês Marc Boal, 43 anos, proprietário de um ferry-boat em Aberdeen, visitou a Islândia pela primeira vez em 1992, integrado no périplo de uma equipa escocesa e com a dupla missão de marcar golos e observar jogadores locais. «Apaixonei-me pelo país e pela envolvência natural de alguns estádios, com lagos, rios, montanhas e vulcões», diz. «Mesmo testemunhando que no inverno só podiam treinar nos ginásios e em meia dúzia de campos de futsal, senti que o futebol islandês tinha uma grande margem de progressão.» Desde então, Boal fez outras cinco viagens ao país, visitou todos os clubes das costas sul e ocidental, tem um blogue, uma página de Facebook e uma revista anual sobre o futebol islandês e tornou-se um dos maiores especialistas no tema. Casou-se há poucos meses e passou a lua-de-mel na Islândia, entre passeios românticos nos fiordes e visitas a clubes da quarta divisão. «Eu vi as infraestruturas desenvolverem-se, os primeiros campos cobertos, os sintéticos nas escolas, os treinadores estrangeiros a chegar e os locais a qualificar-se. Era óbvio que algo de bom estava para acontecer», diz o britânico.
Boal não foi o primeiro escocês a interessar-se por futebol naquelas paragens. Em 1895, James B. Ferguson, tipógrafo de Glasgow, fundou o Clube de Ginástica de Reykjavík e implementou o foot-ball na ilha do gelo, que na altura vibrava apenas com o wrestling. Mas o primeiro jogo só se disputou em 1911, com o Fram a bater o KR por 2-0. E é preciso avançar para 1946, após a II Guerra Mundial, época em que a Islândia ainda era uma das nações mais pobres do continente, para que os melhores jogadores do país se reunissem para defrontar a Dinamarca, de quem a Islândia se independentizara dois anos antes. Perderam 0-3, apesar de terem recorrido à manha de cansar os dinamarqueses na véspera, com um fatigante passeio de cavalo. A partir de então, e com exceção para as glórias dos Gudjohnsen e para uma vitória caseira contra a Itália, a grande efeméride futebolística no país era o mýrarboltinn, ou futebol na lama, um evento realizado anualmente em Ísafjörður, nos Fiordes Ocidentais, que só diferia das ligas oficiais na espessura do lodo. Mas as coisas estavam a mudar.
Em 2000, catapultado pelo efervescente mercado financeiro, nasceu o primeiro estádio coberto e climatizado, em Keflavik, perto do aeroporto internacional.
«Eles já tinham relvados sintéticos desde 1985 e construíram o primeiro campo com relva aquecida, para derreter a neve, em 1998. Mas foram os estádios indoor que revolucionaram a modalidade. Pela primeira vez, era possível treinar o ano inteiro», explica Boal.
As estruturas, pagas pelos municípios, foram localizadas estrategicamente para servir vários clubes, que as usam para os treinos de todas as equipas jovens, masculinas e femininas, e dos seniores. «Têm uma ocupação de 20 horas por dia», diz o escocês.
Como não era possível mudar o clima, os islandeses criaram um de raíz. «Aconteceu tudo muito mais rápido do que esperávamos porque depois dos primeiros passos, do primeiro indoor, toda a gente percebeu as possibilidades que os novos estádios nos proporcionavam», disse Geir Thorsteinsson, presidente da Federação desde 2007, à revista Harper. E assim nasceu a primeira geração indoor; logo em 2011, os rapazes das «estufas de futebol» conseguiram o apuramento para o Europeu de sub-19, os melhores foram chamados para a seleção A e lideraram a equipa até ao play-off de apuramento para o Mundial 2014, perdido contra a Croácia, e cimentaram depois a sua prestação para garantir a presença no Euro deste ano.
Thorvaldur Toddy Orlygsson, 50 anos, antigo jogador dos ingleses do Nottingham Forest e do Stoke City, 43 vezes internacional pela Strákarnir Okkar e atual selecionador nacional de sub-19, nota uma mudança cabal na mentalidade dos jovens islandeses: «No meu tempo, ser profissional de futebol era um sonho longínquo e isso refletia-se na pouca ambição que colocávamos nos treinos», diz, acrescentando que na juventude viveu dividido entre o esqui e os golos. «Mas hoje, quer pela paixão quer pelas perspetivas financeiras, os rapazes têm muito mais ambição. E aliam tudo isso a uma maior disponibilidade para conjugar as suas inatas valências físicas com o trabalho técnico.»
Reduzir a evolução nórdica à edificação de estádios cobertos é, porém, um erro. A Islândia logrou nos últimos anos tornar-se a nação mundial com mais treinadores encartados: são 613 com carteira UEFA-B e 184 com UEFA-A, as licenças necessárias para treinar clubes em competições europeias. Por cada 500 islandeses, há um treinador credenciado. «Mesmo as equipas femininas e as escolinhas com miúdos de 6 anos já não são treinadas por pais de jogadores ou antigos atletas, mas por treinadores especializados. A diferença de qualidade é notória», diz Arnar Bill, o estratega da federação.
O sistema funciona como um relógio afinado: os pais dos atletas pagam de 400 a 600 euros por época para terem os filhos a treinar (as famílias com dificuldades económicas estão isentas) e os clubes pagam os cursos e um digno salário part-time aos treinadores. Não há treinos de captação e todas as crianças têm vaga no clube – embora integradas em equipas devidamente hierarquizadas. Até aos 10 anos, as meninas mais talentosas treinam com os rapazes para evoluírem e a seleção feminina está no top 20 mundial. Mesmo quando a crise financeira estalou, em 2008, foi a sociedade civil que a seu próprio cargo manteve a sustentabilidade das instalações desportivas. Os clubes deixaram de contar com tantos estrangeiros, cancelaram os estágios em Espanha e em Portugal, houve corte de salários, mas os pilares da formação permaneceram robustos. Parece que a Islândia chegou ao seu nirvana desportivo. Mas a KSÍ quer mais.
Orlygsson acredita que a estratégia passa agora pela qualidade e não pela quantidade: «Já cativámos a paixão de miúdos suficientes. Agora podemos construir mais campos cobertos, sim, até porque nos mais antigos a bola bate no teto e os tapetes estão ultrapassados, e até formar mais treinadores. Mas a grande aposta é ter pelo menos três futebolistas de referência por geração, para motivar os demais a seguir-lhes as pisadas», diz a antiga estrela da seleção, que na sua equipa júnior tem já sete atletas a jogar no estrangeiro.
Tanto ele como Arnar Bill acreditam que sem futebol de rua a Islândia não pode continuar a crescer: «Por muito que eles treinem nos clubes, não se chega ao nível do Cristiano Ronaldo sem treinar sozinho ou com os amigos na rua. Estamos a suscitar paixão para criar essa faceta. E, para tal, estamos a fomentar a criação de mais campos nas escolas», diz o estratega da KSÍ.
Um português no frio
Eram raros os apertos de mão. Abraços e beijinhos, então, eram bizarria pura. Arrotava- se à mesa. Guilherme Ramos, de 31 anos, viu gente estranha quando, em 2010, trocou uma época com 24 golos no Lourinhanense pelo Njardvik, um emblema da primeira divisão com um projeto para a entrada na Liga Europa. «No primeiro dia cheguei ao balneário e reparei que os meus colegas me olhavam de uma forma invulgar enquanto eu os cumprimentava, um a um», diz o avançado português. «No segundo dia, fui mais cedo para perceber a dinâmica daquilo. Quem chegava não dizia nada e começava a equipar-se. Passados uns minutos, conversavam como se não fosse nada. Percebi logo que não era por antipatia, mas uma caraterística cultural.»
Vikings foi como o português passou a vê-los. E a apreciá-los. «Se é verdade que parecem atrasados no trato social, também o é que respeitam muito mais o outro. Quase não há crime, as janelas dos carros estão abertas e as chaves ficam do lado de fora das portas. Ninguém rouba», conta o português. Nos treinos, todavia, os islandeses não são tão amigáveis. «Eles focam-se muito no que melhor sabem fazer: correr, muita luta e jogo físico. Costumava dizer que para se marcar falta era preciso sair de maca.» Mas Guilherme adaptou-se a isso e a muito mais: numa das primeiras noites, estranho ao Sol da meia-noite, despertou com os raios na cara, levantou-se para tomar o pequeno-almoço e só então reparou que eram três da madrugada. Só os hábitos alimentares continuam intragáveis: «Dois dos pratos típicos são tubarão podre e cabeça de carneiro, que se come ritualisticamente, começando pelas bochechas e acabando nos olhos. O peixe, que é responsável por 60 por cento da economia do país, não é tão bom quanto pensava e contento-me em comer um salmãozinho e bacalhau fresco», conta.
Após a primeira experiência, Guilherme voltou a Portugal, fez uma pausa na carreira e terminou o mestrado. Em 2014, quando trabalhava como adjunto no futsal do Belenenses, voltou a ser convidado pelos vikings, desta feita o Vidir, da terceira divisão. O português impôs como condição não se limitar a fintar escandinavos: queria também treinar os miúdos do clube. Houve acordo. Hoje treina a levada de sub-16: «Há seis anos, ainda estavam muito presos ao velho estilo inglês de futebol direto, apenas 16 jogadores eram convocados para cada partida, como nos anos 1980. Agora encontrei mais procura pela técnica e métodos mais modernos». A liga inglesa continua a ser, não obstante, a mais seguida pelos adeptos. «Nos carros, encontram-se galhardetes de clubes ingleses e as cadernetas são da Premier League. Nos ginásios, reinam as camisolas do Manchester United. Eles seguem primeiro o seu clube inglês e só depois um emblema local.»
Guilherme já tem cortinados reforçados e joga golfe à meia-noite. É o português que melhor conhece os vikings. Sabe, por exemplo, que nas férias de verão os adolescentes preferem ir trabalhar do que descansar. «Juntam dinheiro para sair de casa dos pais aos 20 anos. Depois arranjam um trabalho qualquer, porque os salários são bons. É por isso que na minha equipa, semiprofissional, tenho mais pescadores do que engenheiros. Aqui não é preciso estudar para ter uma boa vida.» E também sabe que Portugal tem de dar o seu melhor para bater a Islândia: «Eles vão tentar aproveitar o contacto e optar pelo jogo direto. Nas bolas paradas, Portugal tem de ter cuidado, os islandeses são muito fortes», diz, vaticinando o apuramento das duas seleções para a fase seguinte.
O sol contra a neve
Magnus Magnusson é uma espécie de Jorge Mendes islandês e ri-se efusivamente com a comparação: representa dez craques da seleção nacional, incluindo a lenda Eidur Gudjohnsen, que, aos 37 anos, vai despedir-se em grande no Euro 2016. «A nossa tradição é a pesca e quando pensam na Islândia as pessoas veem um bacalhau e não um jogador de futebol. Isso não muda do dia para a noite», comenta. «Mas há uma evolução, claro. Há cinco ou seis anos, havia uma grande suspeição em relação aos jogadores islandeses. Os clubes europeus diziam-me para os pôr primeiro a jogar num campeonato escandinavo e só depois decidiam se queriam contratá-los. Hoje, tenho cinco ou seis jogadores que já se vendem pelo nome. Para os demais, ainda tenho de fazer relatórios e informações.» Até os destinos de emigração se expandiram; os craques islandeses vão hoje para a Holanda, a Bélgica e a Alemanha, quando no passado não passavam da Suécia e da Dinamarca.
Foram os resultados que valorizaram o passe dos jogadores da grande rocha do Atlântico. E dois dos principais responsáveis foram os selecionadores: o experiente sueco Lars Lagerbäck e o dentista islandês Heimir Hallgrímsson.
Sim, dentista. Hallgrímsson cresceu no remoto arquipélago das ilhas Westman, território de oito milhões de papagaios-do-mar, 80 vulcões e 4135 pessoas, e é lá que continua a ter o seu consultório dentário, apesar de passar grande parte do tempo em Reiquiavique como treinador da seleção nacional. «Para um treinador é estranho. Eu sei. Quando fiz o meu curso de treinador em Inglaterra, disseram-me: “Não digas a ninguém que és dentista!” Mas não considero que a educação faça estragos. Estou orgulhoso de ser dentista», disse o técnico à Harper.
À boa maneira nórdica, Hallgrimsson não foi chamado para cosselecionador pela quantidade de títulos conquistados, mas pelo trabalho árduo – conseguiu arrebatar duas taças da Islândia com as mulheres do IBV, a equipa da sua ilha, e levou os homens à pré-qualificação da Liga Europa. A federação chamou-o para assistir Lagerbäck, mas rapidamente deu-lhe o posto de cotreinador. Se o sueco tem a experiência necessária para grandes competições e a mestria tática para montar o 4x4x2 combativo que levou a seleção a França, Hallgrímsson descobre os novos talentos nacionais e interage com os fãs como nenhum outro.
Antes de qualquer partida em Reiquiavique, o treinador dentista dirige-se ao bar Olvan para falar com os adeptos sobre o desafio. «Discursa sobre a tática, sobre o ambiente no balneário e projeta numa tela, em primeira mão, o onze inicial da equipa. Depois responde às perguntas dos adeptos», conta Solvy Tryggva, produtor do documentário Dentro do Vulcão, sobre o apuramento dos islandeses. «Não me surpreende, porque há tão pouca gente que a distância entre as pessoas se encurta», explica Guilherme Ramos. «Há sessenta clubes, alguns deles de cidades com cem habitantes. Após cada jogo, é comum atletas e adeptos juntarem-se no bar para beberem cerveja e comerem cachorros».
Um país que venceu a natureza para estar no Europeu. Jogadores que pagaram para treinar e que chegaram a alternar o futebol com o andebol. Um treinador que dá palestras aos adeptos. Foi esta a nação que Portugal defrontou no arranque do Europeu. Antes do jogo, os islandeses consideravam que ia ser difícil parar Ronaldo e só queriam que os portugueses não se atirassem muito para o chão. «Vai ser uma partida entre culturas diferentes», dizia Toddy Orlygsson. «Nós sabemos da qualidade técnica dos vossos jogadores, vocês conhecem a capacidade de sacrifício dos nossos. É um jogo do Sol contra a neve. Toda a gente sabe que se o sol brilhar intensamente, a neve derrete num instante. Mas se o sol demorar mais de 20 minutos a aquecer, a neve pode aguentar até ao fim.»
FUTEBOL DE ESTUFA
Os campos indoor são autênticos estádios 3G, aquecidos com energia geotérmica, com vários tamanhos – o maior tem capacidade para 15 000 espectadores. Tal como o nome indica, têm no teto a sua mais-valia como escudo protetor da neve, do gelo e dos ventos agrestes. Muitos deles têm sofisticados balneários, tribuna de honra, gabinete de assistência médica e de massagem. No novo milénio, o dinheiro fluía vigoroso na sociedade islandesa como consequência da privatização dos bancos. A bolsa de valores nacional disparou 900 por cento entre 2002 e 2007 e as ações dos bancos valiam sete vezes mais do que o PIB. A gigantesca bolha financeira explodiria em 2008, mas, até lá, os governos locais e a Federação Islandesa de Futebol semearam estádios cobertos: há onze em todo o território (sete de tamanho oficial e quatro mais pequenos) e quando se finalizarem os quatro atualmente em obras a Islândia será o país do mundo com mais complexos deste género. O projeto inicial já foi alargado; a KSÍ planeia agora ter cem campos exteriores de relva sintética e 22 novos campos subterrâneos, aquecidos e também com relva artificial.