Um concelho da ilha de São Jorge foi considerado por uma consultora o pior sítio para se viver em Portugal. O escritor açoriano Nuno Costa Santos foi até lá para perceber se as consultoras também se enganam.
«É preciso ir ver», dizia um belga chamado Jacques Brel. Depois de ter abandonado os palcos, decidiu navegar de iate até às ilhas Marquesas, na Polinésia Francesa. Durante o trajeto passou pelo arquipélago dos Açores e aportou o barco na cidade da Horta. Foi isso que fiz, depois de ter lido uma notícia sobre o top Portugal City Brand Ranking 2016, elaborado pela Bloom Consulting, que considerou a Calheta, na ilha de São Jorge, o pior município para se viver em Portugal, entre 308. Ir ver. E ouvir.
Não lancei a âncora no Faial como o autor de La Quête mas fi-lo noutra ilha do grupo central do arquipélago açoriano: aquela que o escritor João de Melo descreveu como «a ilha mais profundamente ilha dos Açores», com 53 quilómetros de comprimento e oito de largura.
Uma pergunta antes de avançar no texto: quais são os critérios? Quais as variáveis tidas em conta por esta «empresa especializada em marca, país, região e cidade» que empurram a Calheta jorgense para um lugar tão penoso e Lisboa, Porto e Braga para o brilho do pódio? Segundo informações recolhidas online, de acordo com a Bloom Consulting, há «cinco objetivos» e «dimensões essenciais» a cumprir pelos lugares: «atração de investimento», «atração de turistas», «atração de talento», «aumento das exportações» e «aumento da proeminência». São relevados o número de empresas, de dormidas, a população, as taxas de desemprego e de criminalidade e o poder de compra de cada munícipe relativa à média nacional.
Em documento alojado no site da consultora pode ler-se que esta «desenvolveu uma ferramenta única no mercado, o Digital Demand – D2 ©, capaz de “calcular a atratividade de um município ou região de uma forma objetiva, rigorosa e tangível”». Como? «Medindo “o volume total de procuras online, de temas relacionados com negócios, turismo ou talento”.» O Google ganha o papel de árbitro.
Fui então a São Jorge para pisar uma parte de um território atlântico pouco pesquisado virtualmente mas bem real com a sua cordilheira, a sua costa rochosa, as suas escarpas, falésias e fajãs, o seu Pico da Esperança, a sua Ponta dos Rosais, o seu ilhéu do Topo.
Não levei na bagagem os instrumentos da consultora mas sim uma mala e a vontade de pesquisar no motor de busca do contacto direto, sem intermediações.
À chegada, apanhei um táxi e pedi ao condutor para me levar à Vila da Calheta. Apresentámo-nos. Disse-lhe de onde vinha, qual era o motivo pelo qual ali estava e José Gabriel da Silva Matos contou que, além de fazer o transporte de pessoas, é funcionário da junta de freguesia. «Ah, o senhor vem por termos ficado em último lugar no ranking nacional…» Acrescentou depois, num desabafo sem acinte: «Fiquei chateado com aquilo! Então somos o pior concelho para se viver? Como é que se chega a essa conclusão?» Expliquei o que apreendi do cruzamento dos critérios e toquei no ponto das pesquisas internéticas. Confessou-se pouco visitante de youtubes («o meu filho é que sabe disso») e continuou a interrogar-se sobre os fundamentos da sentença, enquanto olhava em frente, concentrado, pela estrada que desce até à vila.
Fui deixar a bagagem na pousada da juventude, sítio com uma vista sobrenatural para o Pico e casa onde se alojam, percebi depois, uma rapaziada de diferentes nacionalidades e algumas famílias em férias. No resto do dia espreitei o campo de futebol e as instalações, novas, da Santa Casa da Misericórdia. E dei umas voltas de carro de forma a olhar as vistas para o mar em dia de sol açoriano sem reservas e explicações.
Há a paisagem, os passeios, os trilhos, e as Fajãs, terrenos planos, situados à beiramar, onde existem casas e culturas em solo fértil e se procura abrigo no inverno.
Mas se estava ali a visitar aquele que foi classificado o pior concelho nacional para viver era importante ouvir quem lá vive – segundo o censo de 2011, 3617 habitantes (na ilha toda são 8998 pessoas). Dediquei-me a ter encontros com gente de diferentes proveniências.
O primeiro aconteceu no Caminho Novo, freguesia da Ribeira Seca. Dei com o sítio e procurei Emanuel Fontes, lavrador de 30 anos, debaixo de um orvalho estival. Foi na cozinha da sua casa que conversámos. Contou que aos 18 anos, entre ir para a universidade cursar História, cumprindo uma vocação semeada por um professor, e trabalhar numa exploração agrícola de origem familiar, escolheu a segunda hipótese.
O início da sua atividade de produtor de leite (para o famoso queijo de São Jorge) foi muito difícil, entre pagamentos e subsídios que demoravam demasiado tempo a chegar e obrigações onerosas para com quem lhe havia concedido crédito. «Foram dez anos muito duros.» Agora, com uma exploração com sessenta vacas produtoras de leite e trinta novilhos, o dinheiro cai-lhe na conta em dia certo e está cada vez mais seguro na opção pela produção de leite em regime extensivo, contrária a outro com mais apetite pela quantidade do que pela qualidade. O seu discurso vai por aqui: pelo sublinhar que o queijo de São Jorge é um produto de excelência, feito à base de um dos melhores leites do mundo e deve ser preservado na sua autenticidade. E pela defesa da sua venda não em hipermercados mas sim na hotelaria e na restauração.
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Emanuel considera o turismo uma aposta, desde que não se pratique em hotéis grandes e resorts. Quando questionado sobre qual o destino dos seus antigos colegas de escola, diz que entre aqueles que continuaram os estudos fora da ilha são muito raros os que regressaram. Ganharam em possibilidades de trabalho mas perderam algo que Emanuel não troca por nada. «Gosto muito de viver aqui, na minha terra… Só o facto de me deitar à noite, olhar para o Pico, para o céu estrelado… E ter tudo destrancado: casa, carro…»
Quem também não trocava a vida urbana pela que tem na Calheta é Délis Fontes, pescador e filho de pescador, que começou a ir ao mar com 9 anos e hoje tem 42. A sua opção também não vai para a quantidade dos peixes que consegue pescar mas para a qualidade e o seu valor comercial, escolhendo o goraz, o cherne e o pargo. Estudou até ao 12º ano e hoje, além de pescador, é armador e trabalha na Fábrica de Conservas Santa Catarina, especializada num atum preparado segundo métodos artesanais, recentemente galardoada com cinco prémios no Concurso Nacional de Conservas de Pescado. Preocupa-se com a possibilidade do fim da pesca com a reforma dos pescadores mais velhos e a circunstância de muitos jovens preferirem recebimentos estatais a irem para o mar.
O empresário Márcio Avelar, de 28 anos, não cabe na categoria de jovens que deixaram a ilha e não voltaram. Fez uma formação fora mas voltou a São Jorge para se dedicar a uma atividade ligada ao turismo de mar, área que aos poucos vai crescendo.
O jornal espanhol El País publicou recentemente um artigo que se referiu a São Jorge e à Graciosa como «os Açores secretos». A Calheta é destacada pelas suas excursões sobre ondas e outros desportos marítimos.
É proprietário da empresa Mar Azores – Sal & Sonhos, com sede num quiosque situado no porto da vila, pequena casa pintada de azul perto da qual estão estacionados barcos de pescadores com nomes como Tânia Marisa. Apoiado por um skipper, nos meses de junho a setembro, transporta à volta da ilha, nas suas duas embarcações, turistas portugueses, franceses e alemães. De há dois anos para cá sente que a procura para as atividades é maior por causa dos voos das low cost que permitem que alguém que viaje para uma ilha do arquipélago possa ser reencaminhado para outras.
MAS NÃO SÓ OS ESTRANGEIROS que têm revelado interesse nos passeios. «Também levo pessoas de cá, que gostam de dar uma volta e conhecer São Jorge a partir do mar.» Além disso, promove o snorkeling e a caça submarina. Só há uma atividade que lamenta ainda não promover: o whale watching (observação de baleias). «As licenças estão distribuídas pelas outras ilhas, São Jorge não tem…»
Fui ter com Clímaco Ferreira da Cunha ao Centro Comercial Progresso, na Rua de Baixo, número 44, quem vai em direção à Fajã dos Vimes. Estacionei o carro no parque da loja grande que vende de eletrodomésticos a materiais de construção e mobiliário. Num dos escritórios de um edifício de três pisos, Clímaco conta que está ligado ao comércio desde 1967, ano em que, recém-chegado na Guiné, onde esteve na Guerra Colonial, abriu uma pequena mercearia no rés do chão de um edifício alugado nessa mesma rua.
A partir do momento em que se reformou, entregou a gestão aos filhos e tem-se dedicado cada vez mais à causa cultural jorgense, investigando por gosto as tradições e as histórias e fazendo o levantamento de edifícios religiosos, picos, ribeiras, algares, miradouros. O seu livro, Recordando o Passado, editado em 2015, fala da vida, das comunicações, de como se circulava na ilha e se namorava e bailava, das alcunhas, das lendas e mitos.
Outra publicação assinada por Clímaco Ferreira da Cunha é um roteiro útil para quem passar uns dias na ilha das «belas Fajãs» (76 ao todo, classificadas pela UNESCO como Reserva da Biosfera), «do santuário do queijo, do genuíno café, das lindas hortênsias, das altas montanhas». Oferece itinerários possíveis e os tópicos essenciais deste território insular descoberto em 23 de abril de 1439, povoado por pessoas de vários lugares do continente português e da Flandres e fustigado por múltiplos terramotos e ataques de corsários.
Percebi também estar na presença de um bom prato. É apreciador de petiscos típicos como os torresmos de porco com inhame, morcela e molho de fígado. Faz um pedido: gostava de encontrar mais caldeirada nos restaurantes.
Se Márcio reclama por uma licença para ver baleias, Clímaco pede uma licença para encontrar uma restauração mais exigente. Apelo de quem ama a terra e os seus mimos gastronómicos.
Depois dos repastos há sempre a possibilidade de visitar o Café Nunes, na Fajã dos Vimes, atrás do qual se faz o cultivo de 350 a 400 plantas.
Aos 30 anos, Dina, filha de Manuel Nunes, dono do Café que ganhou fama a partir do momento em que passou a figurar num roteiro estrangeiro, é guia turística. Saiu para estudar mas não se adaptou à vida continental – tirou em Rio Maior o curso de Desporto, Natureza e Turismo Ativo – e quis voltar a um reduto onde as pessoas se cumprimentam, se ouve o som do mar e cada um tem «o seu pedacinho de terra». Pode- se pescar e plantar. «Temos uma vantagem: se há fome a gente não morre.» Quando regressou, acumulou três trabalhos – um deles na área de desporto e os outros no turismo (um dos quais foi o de rececionista na Pousada da Juventude). No que toca ao caráter sazonal da sua atividade (que inclui passeios pedestres, canoagem e observação de aves), diz que o calendário turístico se vai estendendo por mais meses, para além dos de verão. Faz parcerias com outros agentes – e um deles é Márcio Avelar. E ajuda o pai no que for necessário.
Sentado num café junto ao porto, nos últimos momentos antes de ir para o aeroporto, escrevia um artigo no portátil e, sempre que precisava, ia à internet, beneficiando do wi-fi grátis, oferecido em determinadas áreas através de um programa do governo Regional dos Açores. Puxei do contacto do homem que me havia trazido do aeroporto, José Gabriel Silva Matos, e voltei a ligar-lhe. Marcámos encontro.
Na viagem perguntou-me, com leve ironia, se tinha achado a Calheta o pior concelho do país para se viver. Ri-me e enumerei as pessoas com quem havia falado e os sítios que tinha percorrido. Deixou-me no aeroporto. Fiz o check-in e percebi que o tempo até à hora do embarque permitia uma breve visita à vila das Velas. Lá fomos, em suave ritmo, passeio só com uma paragem, num miradouro. «Da próxima vez que cá vier diga alguma coisa que vamos comer umas lapas.» Clímaco, observador de modos de ser, havia notado que os jorgenses, depois de um certo fechamento inicial, quando conquistados, revelam-se em toda a sua convivialidade. As ferramentas digitais e os rankings não bastam. É preciso ir ver. Foi preciso ir ver.
*O autor viajou com o apoio da Câmara Municipal da Calheta
NUNO COSTA SANTOS
Açoriano (da ilha de São Miguel), 42 anos, a viver em Lisboa, é escritor e argumentista. Autor de livros como Céu Nublado com Boas Abertas (ed. Quetzal, 2016) e Vou Emigrar para o Meu País (ed. Escritório, 2014), também escreve peças de teatro e mantém uma colaboração assídua na imprensa.