Marta, my dear,
«Poesia divina» da relação, dizia você. E a preguiça, como a serpente a Eva – «és agnóstico, já tens álibi para ignorar o divino, quanto à poesia… tens a dos outros!». Confesso-lhe que não me amarrei ao mastro, bem pelo contrário, demandei a estante, não falta por onde escolher. E afinal não disse Freud para, sobre o amor, nos dirigirmos a amantes e a poetas?
A mim dirigiu-se a Catarina por mail. Rápida conta de cabeça, esta será a última carta que escrevo. Razão para alterar o plano de voo? Porquê? Os poetas são mestres a pintar de trevas as despedidas ou a polir-lhes arestas, a mim de escolher o registo pretendido para o adeus. Acontece que a palavra me soou mal; hipócrita. Sejamos claros – se não nos encontrarmos antes nalgum congresso, o passarito que na varanda goza um sol anémico sussurrou-me que estarei com o Júlio Resende no seu programa, precisamente a reboque da poesia. Faz sentido carta de despedida a quinze dias do reencontro?
Não, é dos leitores que me despeço. E, de imediato, à palavra adeus se junta outra – balanço. Terá valido a pena, Marta? Esclarecemos dúvidas, aguçámos curiosidades, ao menos uma pessoa murmurou «parece que estão a escrever para mim»? Porque, a acontecer, trata-se de um privilégio, somos psis. Mais do que tudo o resto perseguimos a escuta empática; a palavra, dita ou escrita, mesmo réussie, empurra-nos para as margens de nós mesmos. Logo, todo o cuidado é pouco, a responsabilidade é muita, o Eugénio o disse,
Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
De um azul tão apaziguado?
E das consoantes, que lhes dirás,
Ardendo entre o fulgor
Das laranjas e o sol dos cavalos?
Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?
É verdade, Marta, se das nossas palavras nem uma semente ficou, tudo terá sido em vão. Deixe-me contar-lhe uma história. Há muitos anos, meu pai regressava de uma das suas idas a Lisboa e à Gulbenkian, de onde regressava maravilhado pela associação livre de Vitorino Nemésio durante as reuniões. Uma senhora ouviu conversa e nome no comboio, perguntou-lhe se além de apelido partilhávamos sangue. Perante o «é meu filho» disparou – «agradeça-lhe, ajudou-me a endireitar a vida». E foi-se embora. «Como se chamava?», perguntei. E meu pai, ateu confesso no que à eficácia da nossa profissão dizia respeito, mirou-me, surpreso, e foi direto ao essencial – «Não disse, meu filho. É importante?»
Abençoada sageza que pôs em sentido o meu narcisismo. Não, não era importante. Alguém pensara em voz alta com a minha ajuda, completara o puzzle que a vinha bloqueando e seguira em frente. Um dos meus velhos professores costumava dizer que a psicoterapia era muito simples – alguém chegava, conversava connosco e ia-se embora. E sorria, perante o nosso escândalo de principiantes afundados em subtilezas técnicas do processo terapêutico, ainda sem a experiência necessária para dele falar com singelo humor.
Quem sabe, Marta? Talvez alguns dos leitores tenham pensado em voz alta connosco, rumo à pacificação interior que todos desejamos. Se assim foi, valeu a pena e poderemos dizer «até sempre» de consciência tranquila.
[Publicado originalmente na edição de 22 de maio de 2016]