Duas Júlias, lisboetas ambas, meninas de pé-descalço ou chinela no pé. Júlia Mendes (1885-1911) acompanhava a mãe que pedia esmola, Júlia de Oliveira (1883-1925) vendia flores pelas ruas. Destinos trágicos tornados mitos. Foram fadistas e inspiraram fados.
O Júlia Florista abre assim: «Boémia fadista/ Diz a tradição.» Ela convivia com cronistas – D. João da Câmara, Júlio Dantas, Malheiro Dias… – que lhe traçaram a «figura bizarra». Ela acompanhava-se à guitarra, como a Severa. Ia às touradas, tirava as flores do açafate e lançava-as à arena. Morreu de ataque cardíaco aos 42 anos. O fado diz: «Ó Júlia Florista/ Tua linda história/ O tempo marcou na nossa memória.» Terá marcado, mas só mais tarde – 12 pessoas levaram-na ao Alto de São João.
O fado Saudades de Júlia Mendes diz assim: «Ó Júlia/ Trocas a vida pelo fado/ Esse malandro vadio.» Esse, o diagnóstico. Segue-se proposta de cura: «Toma cuidado/ Leva o teu xaile traçado/Porque de noite faz frio.» Em vão, ela não ligou, morreu tísica aos 26 anos, era a mais popular atriz portuguesa.
O fado da Júlia, a florista, é mais famoso e foi cantado por Amália. É dos raros, se não único, em que a diva foi ultrapassada (se é possível) por interpretação de outro, Max. Cada verso é swing, fado e jazz. Júlia Mendes não deu tão grande fado mas foi a atriz mais popular do seu curto tempo. Ela tinha perfil canalha, que a intensidade dos olhos e uma boca imensa faziam esquecer. Estava ali uma «figura esgrouviada de fadista, saracoteando-se, bamboleando-se, guinchando, descomposta», descreveu-a, extasiado, um contemporâneo, Augusto de Castro, que viria a ser diretor do Diário de Notícias e embaixador no Vaticano.
O povo ria com Júlia Mendes, desde os barracões de feira, onde ela começou, às tournées com as mais famosas companhias. Era excessiva e provocadora, faltava aos espetáculos, disfarçava-se para ir ver, à porta do teatro, o público indignado por ela não aparecer. Um dia, conta Castro, fez a desfeita em Braga, chamaram a polícia e ela riu-se na cara do empresário: «À força é que não vai! Não represento! Pronto!» Regressou de comboio a Lisboa e no cais lançou aos jornalistas: «Aquilo é que foi uma zaragata! Os cónegos iam-me matando!»
Voltou aos barracões de feira, a sua casa. Em 1910, na Feira de Agosto, onde hoje é o Parque Eduardo VII, no camarim ela encheu lenços de sangue, o peito quebrado pela tosse. Saltou para o palco, tentou fazer rir e era um fantasma patético, arrastaram-na para casa. Só morta voltou a sair. No ano seguinte, na Feira de Agosto já havia um Teatro Chalet Júlia Mendes, a caçar saudades. No seu fado diz-se: «Ó Júlia/ Se estás no mundo vencida/ Não finjas gostar da vida/ Que a vida não gosta de ti.» Ela era assim ou fingia?
Em 1907, um casal de atores e empresários portugueses partiu para o Brasil em digressão e levou um garoto de 5 anos, filho duma colega perdida. No ano seguinte a Júlia Mendes morrer, o miúdo, 10 anos, saltou para o seu primeiro palco, era o Mesquitinha, em homenagem ao empresário, Mesquita. Vinte anos depois, Mesquitinha era astro brasileiro, o cómico mais popular – teatro de revista, cinema e rádio – parceiro de Carmen Miranda (outra lusa importada em criança) e do Grande Otelo.
Mais tarde, depois dele morrer (1956), emprestou-se a Mesquitinha uma lenda: ele era filho daquela Júlia Florista, portuguesa, cantada por Amália. Ele próprio nunca fora de falar do passado, dizia-se nascido no Rio de Janeiro. Na verdade, ele nasceu em Lisboa, em 1902, chamava-se Olímpio Bastos, filho de Rui Pinto Bastos e Júlia Mendes. A outra Júlia, que andava com a noite na alma.
[Publicado originalmente na edição de 20 de novembro de 2016]