Já tivemos a nossa dose de futebol e não vou repetir o assunto. Nunca se deve voltar aos lugares onde fomos felizes. E ainda por cima a NOTÍCIAS MAGAZINE é uma revista e nas revistas há uma espécie de ditadura feminina e justa: futebol, sim, mas só em ocasiões empolgantes e quando dá gosto sentir palpitações e ver corpos. Falemos, pois, de coisas enormes, como uma guerra civil ter começado, aqui ao lado, fez esta semana 80 anos.
80 anos é só ontem, podemos lê-los até nos jornais de hoje: soldados de tronco nu a serem vergastados pela populaça contrária, em Istambul, como padres foram atirados das torres sineiras e falangistas matavam poetas, na Andaluzia. Esses terramotos humanos levam a revoluções que parecem menos dramáticas mas mexem fundo no nosso quotidiano. Pouca gente deu conta do significado de três mil magistrados turcos terem sido expulsos e quase todos os juízes (140 em 150) do Supremo Tribunal mandados para casa. A lei, aquilo que gere o passaporte das mulheres e beber uma cerveja na esplanada, vai ser controlada por um poder cada vez mais medieval.
Isso, hoje e na Turquia. Os acontecimentos brutos de há 80 anos em Espanha desembocaram também num poder inquestionado. Como explicar isso? Deixem-me ver… Talvez contando como se geria a escolha dum chefe de… desculpem, vai ser a última vez, de futebol. Em 1952, o presidente da Federação era-o por ser da pandilha: Franco escolheu Sancho Dávila, por ser primo de José António Primo de Rivera, o ideólogo do que levou o generalíssimo ao poder.
Dávila, contou-me o jornal El País, gostava de touros e nada de futebol. Não era não conhecer as táticas daqueles tempos, era não gostar. Não abria a boca sobre o assunto, mas ele abria-a para o dentista. Então, Dávila nomeou o seu dentista selecionador de Espanha. O Dr. Iribarren aceitou porque julgava que a seleção tinha uma arma letal, Kubala.
Um dia, quando voltar a falar-vos de futebol, conto-vos quem foi Kubala. Entretanto, falo-vos de László Kubala, cidadão daquela sísmica Mitteleuropa, a Europa Central que está sempre a mudar. No fim da II Guerra Mundial, o húngaro Kubala não queira ser o que o seu país se tornara, comunista. Foi para Itália, mas não pôde exercer a profissão, que não era ser funileiro, era, desculpem, futebolista (OK, não falo mais). Pelos estatutos da tal profissão, tendo exercido na Hungria, não podia exercer em Itália.
Porém, em 1949, o imigrado conseguiu um emprego. A empresa Torino, tendo um compromisso internacional com uma empresa portuguesa, chamada Benfica, ia mandar uma delegação a Lisboa, e não se importava de levar Kubala. Azar, para esse dia, ele tinha de ir à fronteira buscar a mulher que também se exilava – com os imigrantes há sempre contratempos familiares. Afinal, sorte para ele: a delegação da empresa Torino, ao voltar para casa de avião, bateu na Basílica de Superga e morreram todos.
Enfim, László Kubala foi para Espanha, e tornou- se Ladislao Kubala e, como as leis europeias tinham mudado um bocadinho, ele pôde ir trabalhar para empresa FC Barcelona. Ganhou todos os prémios. Tantos e tão bem, que volto por um instante àquela coisa lá de cima. A seleção espanhola, julgando contar com Kubala, até pôde contratar um dentista para chefe. Afinal, não, Kubala podia ser Ladislao em clubes, mas continuava a ser László em seleções. Sem ele, a seleção espanhola foi eliminada pela Turquia, e não foi ao Mundial de 1954. O dentista foi despedido.
O que eu quero dizer é que quando o mal parece absoluto, como anuncia a Turquia, há sempre a queda dum dentista que nos sossega.
[Publicado originalmente na edição de 24 de julho de 2016]