Uma história debaixo do nosso nariz

Notícias Magazine

Esta, a de Isabel Batata-Doce, que contamos numa grande reportagem. A história, o destino e personagens em papéis improváveis. Jornalismo.

Faz agora 50 anos aconteceu uma coisa extraordinária. E não uso a palavra ao calhas. Foi mesmo extraordinário o que se passou naquela clareira do mato junto a Catete, Angola. Um batalhão de artilharia, no meio da Guerra Colonial, ficou com uma menina que tinha sido perdida pela mãe, em fuga. Nestas terras, a gente local, explorada pelos conglomerados algodoeiros, já se tinha deixado seduzir pelas palavras de libertação do MPLA – Catete é terra natal de Agostinho Neto, fundador do partido.

Concentremo-nos, portanto, nestes homens. Mancebos, mas já endurecidos por uma guerra em condições que lhes eram demasiado estranhas – pó, humidade, calor – e em que o que estava em questão os ultrapassava largamente – o destino de Portugal e de Angola, o conflito racial, a própria presença europeia em África… A estes homens da história que estou a começar a contar calhou-lhes ainda mais um desafio: caiu-lhes um bebé no colo. Um bebé. Negro. Um bebé cuja mãe fugiu e deixou para trás, no mato.

E o que fizeram eles? Como se diz nos filmes americanos, estiveram à altura das circunstâncias: recolheram a criança, levaram-na para o quartel, trataram dela e mimaram-na e, no final, trouxeram-na para Portugal. Uma das famílias «adotou-a», deu-lhe educação num colégio. Alguns dos militares continuaram a ajudá-la. E com as meninas do quartel manteve as amizades. Esta é a extraordinária história que faz capa da edição desta semana. É a história de Isabel Batata-Doce, nascida Isabel Manuel Jacinto. A menina que foi adotada por um batalhão.

Há histórias que aparecem nas nossas vidas para nos marcar. A vida de um jornalista faz-se assim, uma carreira cujos marcos são as histórias que lhe aparecem e que mostram que tem de continuar a fazer o que faz. Esta é uma dessas histórias. Chegou até nós graças à intervenção de José Simões Dias, o chefe dos nossos arquivos. Foi ele que percebeu a importância do que Isabel Batata-Doce (é esse o nome por que responde) lhe estava a contar quando ela veio ao arquivo para procurar as páginas do Diário de Notícias que falavam dela, há 50 anos. Ele trouxe esta história até nós. Só temos a agradecer-lhe, e aqui, formalmente.

Depois disso, coube ao Ricardo Rodrigues perseguir o fio da meada que se ia desfiando em pormenores cada vez mais interessantes que uma reportagem sempre tem: no revelar da alma humana. O Ricardo ia chegando à redação cada vez mais entusiasmado, escavando nos arquivos. Ele tinha uma dupla tarefa. Contar esta história e tentar percebê-la.

Percebendo o que estava em causa, pormenores confusos, contextualizar e reenquadrar. Perceber, por exemplo, que o que hoje poderia ser considerado um rapto, foi simplesmente, um ato de humanidade – que a própria família de Isabel em Angola consentiu, numa altura em que sair dali seria, também, encontrar um futuro longe da guerra que parecia interminável.

Esta história esteve escondida durante 50 anos. Daqui, do 5º andar do prédio do DN na Avenida da Liberdade, posso dizer que esteve sempre debaixo do nosso nariz. Quantas haverá? E são histórias destas que fazem valer a pena fazer o que fazemos.

[Publicado originalmente na edição de 15 de novembro de 2015]