
Que giro. Não sabia que se podia alegar desconhecimento da lei. Nem sabia que qualquer cidadão activo poderia não saber quais as suas responsabilidades contributivas. Isso, penso eu, terá sido invocado por muitos aos balcões da Segurança Social e das Finanças, provavelmente com toda a sinceridade, mas, como se pode imaginar, foi-lhes imediatamente dito «Dura lex, sed lex».
O problema é quando não se sabe latim, que deve ser o caso de alguns, mesmo que tenham responsabilidade para saber isso e muito mais. Há um estranho entendimento que precisamente os «alguns» com maiores responsabilidades e que decidem acerca dos assuntos dos outros estão «livres» da dura lei e dos seus rigores.
Outro dito, desta vez em português, para ser melhor entendido por todos: «Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte.» Sempre odiei este provérbio. Não só porque confunde arte com biscatice e aldrabice, o que considero um insulto a todos os que trabalham em Arte, assim, com letra maiúscula, porque se trata de uma actividade nobre e que exige uma enorme seriedade e dedicação, mas também porque legitima a dita biscatice e aldrabice, desde a mesa onde se corta o bolo até à «mesa» onde se corta o «bolo».
O que, para mim, é um dos males maiores que afligem o nosso país: este estranho conluio tácito de que quem tem poder está acima dos outros e deve beneficiar de regras diferentes, daí tirando dividendos. As caras de espanto e indignação de quem é chamado à pedra, constituem prova disso mesmo. Que, de alguma forma, se pensava que estavam acima da lei.
Mas como vivemos num país de direito e às direitas, é claro que qualquer cidadão que ocupe um cargo público e, principalmente, de natureza política, governativa e legislativa, é previamente investigado e são analisados todos os aspectos da sua vida contributiva. A transparência e sentido de Estado assim o exigem. A seriedade e honra pessoal, também. E, obviamente, que os funcionários que irão proceder à consulta de tais dados serão protegidos e não irão ser penalizados pelo exercício do seu trabalho. Obviamente.
Principalmente quem dirige os destinos de milhares de pessoas, quer seja num governo, ou numa empresa pública ou em qualquer alto cargo de poder, terá um sentido tão apurado de dever que será o primeiro a gritar bem alto a sua responsabilidade quando algo corre mal. Nunca se irá desculpar dizendo que não sabia ou que não se recorda, como se faz naquelas séries americanas de tribunal, onde o acusado se tenta escapar alegando insanidade temporária.
«O chefe que não sabe o que se passa na sua empresa» é um conceito estranho, mas por muitos invocado, coisa bizarra. Será uma doença profissional que aflige quem ocupa cargos de alta responsabilidade? Se assim for, desejo-lhes sorte no diagnóstico porque, como se sabe, isto na Saúde não anda muito famoso e tentar encontrar tratamento para uma doença grave é, muitas vezes, um esforço vão.
Se for só música que nos querem dar, então também sinto muito por eles. É que uma das casas mais importantes onde se ensina Música e outras Artes Performativas, o Conservatório Nacional, está a ruir. Uma metáfora perfeita para o estado da Cultura em Portugal.
São uns poetas, os nossos responsáveis políticos. Conseguem criar metáforas tão pertinentes como a da cultura de um país a despedaçar-se aos poucos, até que rua de vez. Rua, de uma vez por todas com isto tudo.
Que se ponham contentores na política e se meta o entulho todo lá para dentro. Ao que sei é isso que se deve fazer por lei num edifício em construção, como se alega que Portugal é, neste momento de «reconstrução económica». Dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei. Para os que não entendam latim.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[Publicado originalmente na edição de 8 de março de 2014]