
Conta-se, sem grandes certezas, que no dia 8 de Março de 1857, em Nova Iorque, várias operárias de uma fábrica se reuniram, fazendo greve e protestando contra as condições esclavagistas de trabalho que as mantinham na linha de montagem por mais de 16 horas, contra a disparidade salarial que na altura ditava que uma mulher pudesse ganhar menos um terço do que um homem no desempenho das mesmas funções e pelo tratamento digno no seu local de trabalho.
Conta-se ainda que, como forma de retaliação, estas mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Como resultado, mais de uma centena de mulheres morreu carbonizada, tal qual as bruxas de Eastwick ou Joana d’Arc. A impossibilidade de confirmação da veracidade desta história não impediu que se marcasse o dia 8 de Março como o Dia da Mulher e da sua luta pela igualdade.
A história pode ser ou não verdadeira, mas não será difícil de imaginar que algo parecido possa ter acontecido. Afinal de contas, durante milhares de anos, qualquer tentativa pública ou privada de libertação de uma ou muitas mulheres foi reprimida com extrema violência e, até mesmo, crueldade.
O medo que nós, mulheres, nos apercebamos de quanto poder temos, da ligação quase umbilical que conseguimos estabelecer com o mundo natural, com a Terra, os animais, as flores, plantas, rios, mares, lua, com a noite, as estrelas e o Sol, com todos os elementos que nos compõem o mundo e que conseguimos compreender de forma intuitiva, se a isso nos predispusermos, esse medo levou a que durante tanto tempo se tentasse calar a voz feminina a todo o custo. Por isso se perseguiram as «feiticeiras», a quem se chamou de «bruxas», e depois as mulheres que lutavam pelo direito de voto, a quem se chamou de «sufragistas». Agora, chamam-nos de «feministas».
Tudo sempre como se fosse um palavrão, uma desgraça que cai sobre uma família a quem calhou aquela ovelha ronhosa que se atreve a ser quem quer e não quem lhe dizem que deve ser, a comportar-se como sente que deve, não como lhe querem impor. Depois, o eterno mito que se pretende semear de que entre os flancos femininos se desenrola uma guerra civil. Só assim o é porque se tenta inquinar aquilo que sempre foi e sempre será uma irmandade.
Somos irmãs, somos eternas meninas, cheias de sonhos e amor para dar a quem o queira colher. No momento em que nos voltarmos a dar conta disso, depois das fogueiras, seremos uma e só voz, um coração enorme que bate de amor e que enche este mundo do calor maternal de que tanto precisa.
E as mulheres e homens que agora têm medo disso (porque há homens e mulheres que não têm medo e outros que tremem só de pensar), perceberão que num mundo assim todos têm lugar, até os que estão contra, porque num mundo assim, o amor é o valor mais alto.
Somos tão iguais e tão diferentes quanto um ser humano é em relação a outro. As diferenças de género são bem mais insignificantes do que as diferenças de génese. Tanto que temos para aprender com os homens e tanto que os homens têm para aprender com as mulheres. Para que, no final, quando um dia nos dermos uns aos outros sem medos, nem resguardos, sem culpas ou ridicularizações, assim, despidos de muros, possamos finalmente perceber que o que nos une e nos torna mais fortes é esta coisa tão bonita de se ser e de se estar vivo. A gozar o tempo escasso que nos é dado e de cujo fim não sabemos.
As partes juntas formam um todo. Um dia para nos lembrarmos como deveriam ser todos os dias. Fogueiras que ardem, só nos poemas e por paixão. De resto, apenas o amor nos resta.
Ser feminina não é uma condição, uma fatalidade, uma sentença. É ser livre como a vida, porque a vida é ela quem dá.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[Publicado originalmente na edição de 15 de março de 2015]