Sabe a esquecimento

Notícias Magazine

As memórias, algumas delas pelo menos, as que se escondem sem que saibamos porquê, mas que, uma vez recuperadas, percebemos quão importantes são ainda para nós; essas memórias, como estava a dizer, são tantas vezes trazidas de volta por um som, um cheiro, um sabor. As memórias sensoriais, aquelas que um dos nossos sentidos registou num ficheiro específico, apenas recuperável se se recuperar determinado estímulo, têm o poder de contrariar a linha do tempo e nos transportar até ao passado para reviver tantas coisas que ficaram esquecidas, hibernadas, à espera.

Penso nisto enquanto colho framboesas das silvas, tal qual fazia quando era miúda e andava pelos campos da aldeia dos avós à cata das framboesas maduras e que estivessem à sombra, para as poder comer de imediato sem arriscar uma dor de barriga. Ou enquanto corto o tomate-coração que já não consigo encontrar em Lisboa, mas somente numa horta privada na aldeia do Tua. Ou enquanto trinco aquela broa de milho beirã que antes era bem mais amarelinha e cujo sabor a milho não é compatível com a mistura de farinhas industriais que agora corrompem o seu pristino sabor.

Aí, percebo quantas e quantas memórias me estão a ser surripiadas à conta da fruta e legumes deslavados, sensaborões e parametrizados que nos querem vender na maior parte dos espaços comerciais.

Um bom pedaço da diversidade agrícola do país vai-se perdendo, mercê das normas que ditam qual o tamanho, aspecto e peso certos de determinado alimento para que possa ser vendido ao grande público. Tamanho, aspecto e peso. Uma equação de onde se elide o sabor, que fica circunscrito aos círculos da memória.

Agora, todas as cenouras são iguais e sabem ao mesmo. E quase que se pode dizer que todas as cenouras sabem ao mesmo que um tomate sabe, que sabe ao mesmo que um limão sabe, que sabe ao mesmo que uma ameixa sabe: a muito pouco. Quase nada. Tudo igual, sem rugosidades, nem partes tocadas, sem bicho, porque nem o bicho lhes toca.

Antes, se havia bicho era porque a fruta era boa, doce. Tão boa e tão doce que as minhocas e os pássaros a queriam comer. E antes, o nome da fruta era apenas como que o apelido. Havia para cada apelido, mil e um nomes próprios: a maçã camoesa, a maçã-bravo-de-esmolfe, a pêra rocha, a pêra marmela, a ameixa rainha Cláudia. As sementes eram cuidadosamente preservadas de ano para ano, de colheita para colheita.

Agora, as sementes são iguais, quer se esteja a plantar aqui ou no México. A sua variedade tem vindo a diminuir drasticamente e estas pequenas maravilhas regionais, nacionais, subjugadas aos interesses dos grandes grupos económicos que detêm as grandes empresas do sector agro-alimentar e que vendem as sementes já escolhidas, cuidadosamente preparadas em laboratório para destoarem pouco e lucrarem muito. Estas sementes quando plantadas misturam-se depois com as outras, as verdadeiras, criadas na terra e corrompem-nas. Uma batalha desigual na qual a força do bully, grande, espalhafatoso, com muita garganta, mas pouco substrato, ganhará sempre ao feio, desajeitado, mas cheio de sumo e de sabor.

Em tempos de acordos transatlânticos que visam impor uma ditadura de sementes e (pouco) sabor a grande parte do mundo ocidental, lembro e presto a devida homenagem à história agrícola humana que se soube aliar à natureza e criar uma diversidade de sabores que nos foram alimentando as memórias.

E faço o luto a todas essas memórias que nunca mais poderão voltar, porque os sabores que lhes estiveram na origem foram apagados, proibidos, corrompidos. Mais um pedaço da nossa história, pessoal, nacional e universal que se apaga, sem que dêmos por isso, atarefados que andamos a tentar construir memórias insípidas, insonsas, industrializadas e iguais, como a comida. A comida dos –i’s. Ou, talvez mais apropriadamente, a iFood.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
9-8-2015