As de Francisco, Dionísia, António, Deolinda, Joaquim Silva e Joaquim Ribeiro, por exemplo. Eles são alguns dos muitos portugueses – mais de quatro mil no final do ano passado – que passaram os 100 anos. No dia em que Portugal se decide mais uma vez, a memória de quem já viveu muito pode trazer-nos algumas lições. Todos eles passaram revoluções e acalmias, tiveram vidas duras, e perceberam como tudo mudou tanto, para o bem e para o mal. Vemos mais longe quando estamos apoiados no que outros viram antes de nós. Eis alguns gigantes deste tempo.
Passamos vidas inteiras a questionar de onde vimos e para onde vamos. Por isso é natural que, num dia em que a democracia nos mandata para decidir a segunda parte dessa máxima, gastemos algum tempo a pensar na primeira. E se o que somos, o que nos impulsiona a ir para onde vamos, é resultado daquilo que fomos, é interessante dar voz aos cidadãos centenários. E se partimos de algum preconceito, que nos faz esperar relatos de grandes lutas e trabalhos pela vida, percebemos que o essencial é outra coisa: o que mais sobra das vidas longas são os afetos. E as saudades.
Portugal, país historicamente condicionado pela falta de gente, está agora em clara perda. Estima-se que, em 2040, possamos estar abaixo dos nove milhões de habitantes (e em 2100 nuns escassos 7,4 milhões). Em causa está o envelhecimento da população – de que o aumento do número de centenários nos últimos anos é apenas um exemplo: no final do ano passado eram 4066 (1298 homens e 2768 mulheres), o dobro dos registados em 2011 (2068). Mas o saldo migratório também pesa bastante, com uma forte tendência para a emigração da população ativa.
O cenário existe, mas também não é razoável dar-lhe uma aura catastrofista. Não só porque será possível combatê-lo, trabalhando dentro de portas para conter a emigração, mas também porque estamos a falar de um país que progrediu radicalmente desde os tempos em que os nossos centenários batalhavam mais ativamente pela vida. Olhando para os números do relatório sobre o Estado de Saúde na Europa em 2015, elaborado pela Organização Mundial da Saúde, a esperança média de vida em Portugal supera a média europeia, fixando- se em 83,9 anos para as mulheres e 77,4 para os homens.
É num país muito mais qualificado, modernizado e aberto ao mundo que vivem hoje os nossos anciãos, património inestimável de um século que para eles foi iluminado pelas conquistas pessoais, mas também sombrio, com quase todos eles passando a maior parte da vida no esquecido Portugal de uma ruralidade primitiva, que hoje desagua no interior despovoado. Mas talvez sem esses ares eles não vivessem tanto.
PEDRO OLAVO SIMÕES
POUCA FÉ NO FUTURO, MUITA NO TRABALHO
JOAQUIM SILVA, 105 ANOS
ALIJÓ
«Para contar a minha história bem contada, não me calava durante uma semana.» Uma vida como a de Joaquim Silva, «o pasteleiro» como é conhecido, não se resume em poucas linhas. Começa na despedida da monarquia, cruza regimes políticos e atravessa décadas feitas de «miséria e trabalho duro».
Nasceu a 29 de julho de 1910, num tempo em que os tostões cabiam na palma da mão. Natural de Favaios, em Alijó, perdeu os pais quando ainda mal sabia andar. Não foi à escola, mas diz que nem precisou. «Tinha uma cabeça do caneco» e singrou na vida. «À custa de muito, muito trabalho», repete.
«Fui criado aos pontapés. A roupa era feita de remendos em cima de remendos.» Quando se casou, começou por vender trigo, mas não escapou à febre do ouro negro e meteu-se no negócio do volfrâmio. «Havia sempre quem tivesse algum minério para vender. Quando não tinha dinheiro, as pessoas fiavam-me porque sabiam que eu pagava.» No tempo de Salazar, recorda os perigos que enfrentava nas estradas. «Fui assaltado muitas vezes e noutras eram os fiscais que me mandavam parar.» Com o 25 de Abril pouco mudou. «Por aqui era só miséria e assim continuou.» Nunca ligou à política e não augura grande futuro para o país, mas acredita que o trabalho é a solução para tudo. «Hoje, nem vinte rapazes novos fazem o que eu fazia. Tenho milhares de quilómetros nas pernas e de quilos às costas. A minha vida foi só trabalhar, noite e dia. Foi isso que me deu saúde.»
Homem franzino, tem uma família grande, mas vive sozinho e ainda prepara o próprio pequeno-almoço. Não consegue estar parado. Quando o tempo o permite, vai até ao largo onde se põe à conversa com mais dois ou três como ele. «Bem, como eu não. Têm 70 e tal anos, são rapazes novos ao pé de mim.»
SANDRA BORGES
Fotografia: Pedro Martins/Global Imagens
NASCIDO NAS CAVES DA MONARQUIA
FRANCISCO CUCO, 105 ANOS
CASTELO DE VIDE
Em 1910 nascia, em Vila Viçosa, Francisco António Cuco. «A minha família vivia nos baixos do Palácio [Ducal], onde o meu pai tratava dos cavalos do rei.» Francisco vive hoje num lar em Castelo de Vide e não disfarça o esforço que a viagem no tempo o obriga a fazer. As pernas já não o deixam andar, a audição prega-lhe partidas e a memória fixa-se apenas nos excertos mais marcantes. Não se esquece de que recebeu a primeira responsabilidade após a morte do avô, quando começou a guardar uma vaca depois da escola. A adolescência foi passada numa serração, o primeiro trabalho. Seguiu-se o serviço militar. Foi «assentar praça em Lisboa», naquela que foi a única etapa passada longe do Alentejo.
No regresso a Vila Viçosa, montou uma carpintaria. Ali conheceu a mulher. «Namorava com outra rapariga da terra, mas casei-me com a Maria para a guardar.» E daí nasceu Rosália e José António – que morreu com 24 anos. Trabalhou até aos 85 anos. Alheado das notícias, recorda que mais de metade da vida foi vivida sem televisão e outros meios a não ser a conversa entre vizinhos para saber o que se passava no concelho.
ANDRÉ RELVAS
Fotografia: Orlando Almeida/Global Imagens
O MUNDO CABIA TODO NA ALDEIA
DIONÍSIA PALMA, 100 ANOS
BEJA
O passado, visto à distância, é um emaranhado de dias duros que se resumem numa expressão popular que Dionísia Palma gosta de usar: comeu «o pão que o diabo amassou». Nasceu numa aldeia do concelho de Beja a 19 de janeiro de 1915, mas a família rumou a Serpa, onde viveu «tempos difíceis na agricultura». «Trabalhei para os senhores ricos da aldeia. Quem vivia do campo tinha uma vida dura. Não havia máquinas e os trabalhos eram muito custosos.» Quem trabalhava à jorna aproveitava todos os minutos e pouco tempo tinha para comer. «Levávamos um bocado de pão, com um naco de toucinho, queijo ou linguiça, e bebia-se água. Era o que havia. E cheguei a esta idade.»
A história de Dionísia é a da miséria a que estavam sujeitos os trabalhadores eventuais na planície alentejana, praticamente escravizados no verão, sem ter o que fazer quando chegava o inverno. É a história, também, dos que fizeram a Reforma Agrária nos tempos em que a revolução todos os dias criava as suas próprias regras.
Apesar de ter vivido perto de Espanha, Dionísia nunca passou a fronteira. «Não se sabia o que havia ali do outro lado.» O mundo cabia todo na aldeia, em dias moldados pelas tarefas próprias de cada estação. Revoluções, governos ou decisões que ao longo de décadas foram mudando o país passavam-lhe ao lado, num tempo em que as notícias corriam de boca em boca.
TEIXEIRA CORREIA
Fotografia: Orlando Almeida/Global Imagens
VIDA DE TRABALHO E ASPEREZA
DEOLINDA AGOSTINHO, 102 ANOS
BEJA
Uma vida inteira faz-se de memórias. E quando falamos de vidas que levam mais de 100 anos, são fragmentos da realidade que se colam na cabeça e a que se volta ocasionalmente. Imagens, cheiros, sons. Saudades, também. No caso de Deolinda Agostinho, uma das memórias mais marcantes que tem é a do som dos comboios a passar nas duas linhas férreas que tinha de atravessar a pé quando ia vender legumes ao mercado de Beja. O ramal de Moura foi extinto há um quarto de século, mas o som das automotoras a passar a escassos metros das casas ainda hoje está bem vincado nas memórias de Deolinda.
Leva 102 anos, cumpridos em junho. Nasceu e vive em Beja, mas no discurso coincide com as descrições de quem sempre esteve no campo. A vida, recorda, foi toda de trabalho e aspereza. «Morava num bairro. A cidade ficava longe para tudo. Andei muito a pé. Antigamente não havia transportes. Foi uma vida muito dura.»
À canseira da lida da casa juntou-se o trabalho do campo, para os que eram os senhores da terra e, também, numa nesga de terra que lhe dava sobrevivência. «Havia dias em que se labutava do nascer ao pôr do Sol. Tive uma horta, produzíamos para gasto de casa e também dava para vender. Foi um tempo diferente. Apesar de se madrugar para ir para o mercado, havia convívio com os clientes e juntavam- se uns tostões.»
Deolinda está num lar há três anos. Antes disso perdeu um filho. Lembra-se bem desse dia triste, mas gosta pouco de falar da família. Há saudades que o tempo não mata.
TEIXEIRA CORREIA
Fotografia: Pedro Martins/Global Imagens
ENTRE O CAMPO E A CONSTRUÇÃO
ANTÓNIO ANTUNES, 104 ANOS
OLEIROS
«Na aldeia todos me conhecem. Tenho sempre conversa na rua. Quando vou à casa do meu filho, em Lisboa, saio à rua sem conseguir uma única conversa. Aquilo é uma correria!» António Antunes vive na aldeia que o viu nascer há 104 anos, em casa da filha, Maria da Graça. Cabelo grisalho, sorriso rasgado, é tratado como um habitante especial de Cambas, Oleiros.
A primeira vez que aconchegou os pés nuns sapatos tinha «7 ou 8 anos, já era um rapaz feito que trabalhava na lavoura». Ao longo da vida andou no campo (esteve à ceifa no Alentejo) e na construção civil, em Portugal e em Espanha. Depois do serviço militar, regressou à aldeia, agarrou-se a tudo o que era trabalho e construiu casa própria.
Levanta-se às nove horas e encontra na cozinha o pequeno-almoço que a filha, entretanto já ocupada na horta, lhe deixou. Liga a chaleira para o café e no micro-ondas aquece o prato de papas. Veste-se, faz a barba a seco e sai em direção ao café, no fundo da aldeia numa das encostas do rio Zêzere. À tarde, depois da sesta, repete a visita ao café. Quando jogam às cartas, fica a observar. Na televisão, só o futebol o prende e o enerva, quando o Benfica perde. Ao final da tarde, acompanha a transmissão do terço pela rádio Renascença, apoiado por uns auscultadores. Noutros tempos, estas aldeias não tinham eletricidade nem água canalizada. Católico, vai todos os domingos à missa na igreja do cimo da aldeia. Senta-se sempre no mesmo banco, onde está uma almofada que a mulher, falecida em 2010, lhe ofereceu. A filha diz que ele tem uma saúde de ferro e ele garante que fica mais novo quando está entre os mais pequenos dos cinco netos e oito bisnetos.
CÉLIA DOMINGUES
Fotografia: Adelino Meireles/Global Imagens
A SINA ESCRITA NUMA RIFA
JOAQUIM RIBEIRO, 104 ANOS
VALENÇA DO MINHO
Merceeiro, empreiteiro e filatelista. Joaquim Lopes Ribeiro, prestes a cumprir 104 anos, coleciona vidas dentro da própria vida. Nasceu em Valença do Minho, a 23 de novembro de 1911, e aos 13 anos foi para Lisboa, onde arranjou trabalho como ajudante de merceeiro – «Uma mercearia no número 85 da Rua de São Bento, em frente à escadaria da Assembleia da República», foi o primeiro de vários estabelecimentos onde trabalhou. Ganhou a experiência, que mais tarde lhe permitiu abrir o seu próprio negócio. Por intermédio de um dos seus cinco irmãos, que vivia em Viana do Castelo, tornou-se proprietário de uma mercearia no Largo da Altamira, na zona ribeirinha da cidade minhota. Durante mais de trinta anos, foi «o senhor Joaquim da mercearia». «Vendia amendoins e o melhor café da cidade.»
Aos 42 anos, casou-se com Marcelina. «Tinha muitos pretendentes, mas eu fui o preferido.» O casamento durou 53 anos. Tiveram dois filhos, um morreu com poucos meses, e Joaquim cuidou da mulher até a morte.
Entretanto, aos 55 anos, Joaquim Ribeiro começou uma nova vida. Saiu-lhe numa rifa um terreno com projeto para construção e decidiu doar a mercearia aos funcionários, para se dedicar à atividade de empreiteiro. Na propriedade que lhe calhou em sorte, construiu o Bairro de São Roque, onde ainda hoje vive. Não parou até perto dos 90 anos, quando abandonou a construção. Para não ficar parado, abraçou a filatelia. Tem uma coleção valiosa e participa em exposições em Portugal e no estrangeiro. «No outro dia enviei selos para o Brasil. Não vou lá, mas envio pelo correio.»
Um dos segredos da longevidade são os passeios a pé, garante. Sete quilómetros junto ao mar na Praia Norte. «Venho todos os dias. Sozinho. Respira-se aqui um ar fantástico.»
ANA PEIXOTO FERNANDES