Atrás de um grande fadista, além de guitarristas, estão também outras figuras que ajudam a manter a arte e o negócio. Fomos à procura dos rostos discretos nos bastidores. Encontrámos gente com amor genuíno pela canção portuguesa, com fado no coração – e até tatuado na pele.
Diogo Varela Silva
REALIZADOR DE CINEMA
Qual a luz própria de um fado vadio? O que é um grande close-up das cordas de uma guitarra portuguesa? Como se capta a vibração de um concerto? Se há realizador que o sabe, é Diogo Varela Silva. Nos últimos quatro anos, o cineasta tem documentado o fado de várias formas. Traz consigo o fado no olhar. No olhar, no coração, na pele e no sangue – é neto de Celeste Rodrigues e sobrinho-neto de Amália. Sabe de fado como poucos e tem documentários estreados na televisão e nos festivais de cinema. Tem também um projeto, ambicioso, para fazer um musical de fado – ainda não foi aprovado pelos jurados do Instituto do Cinema e do Audiovisual. Além disso, assume que o fado tem muitas histórias de bastidores que poderiam e deviam ser filmadas. «O fado convoca as mais fascinantes personagens. Como as pessoas que pairam nas casas de fado, viciadas, gente que se mudou para Alfama para estar diariamente em torno do fado! Depois, há toda aquela vida noturna que se pega à pele…»
Recentemente, Diogo foi um dos cúmplices de Bruno de Almeida no documentário Fado Camané. Onde há fado e cinema, ele está lá. «O fado tem essa coisa pura que é falar de experiências de vida. Uma pessoa acaba por se identificar por um ou outro tema. Quase vemos a nossa vida revivida em alguns fados. É uma boa maneira que temos de fazer a nossa catarse. Além disso, há os ambientes que podem ir do bas-fond às casas de fado mais solenes…Há de tudo.»
Quando tem a câmara ligada o segredo é captar o momento. Só que no fado nada se repete. «Não há dois fados iguais. Essa é que é a grande beleza do fado, mas em cinema, para o raccord, é lixado! É um desafio para um cineasta.» Saber ouvir é saber filmar.
Inga Oliveira
RADIALISTA
Fundada em 2009, a Rádio Amália (92.0 FM) é um dos casos radiofónicos mais bem- -sucedidos dos últimos anos e tem sido um dos motores da dinâmica da imparável popularidade do fado. Inga Oliveira é uma das vozes em destaque da emissora. Natural do Montijo, oriunda de uma família onde o fado está sempre presente (o avô ensinou-a a ouvir Amália), todos os dias, das 17h00 às 20h00, está no ar com Casa de Fados. Música, notícias e, uma vez por semana, um convidado na rubrica Estrela da Tarde.
Respeitada por fadistas e pelos ouvintes, costuma ser convidada para apresentar galas e eventos de fado. Ela sabe que é considerada um barómetro dos próximos projetos e concertos. Um profissional de uma rádio especializado tem de saber tudo com antecedência, tem de ter informação privilegiada. Por isso, quando sai da rádio, na Rua Viriato, em Lisboa, é costume vê-la em casas de fados. É impossível desligar esse chip, garante.
Outra das suas especialidades é descobrir êxitos. «Quando passamos certos fados, percebemos logo se é um tema orelhudo e se fica no ouvido. Nos últimos tempos vi aqui nascer fados que pegaram, como O Homem do Saldanha, do Marco Rodrigues, o Desfado, da Ana Moura e, mais recentemente, a Sara Correia com Se o Mundo Dá Tantas Voltas.»
Da Fonseca
FOTÓGRAFO
Era o fotógrafo da noite de Lisboa nos anos 90. Fotografou os ambientes de uma movida que se foi. Agora, com 54 anos, regressou à noite. Sempre de bicicleta, de um lado para o outro, tornou–se uma espécie de fotógrafo oficial do fado ao vivo em Alfama, sem querer. «Tinha sido pai e tornei-me quase dono de casa. Estava numa espécie de licença sabática e acabei por vir fotografar a noite do fado porque não furava os meus horários. O fado é noite, claro!» Da Fonseca confessa que antes não era um fã de fado. Agora, não quer outra coisa. Ele e a câmara que não larga morderam o isco e ficaram dependentes. Acontece a muitos.
Além dos concertos de fadistas, o seu olhar interessa-se também pelas atmosferas que encontra no renascer do conceito da casa de fados sem ser apenas para turistas. Apesar de ter a arte da invisibilidade, quem for à Rua dos Remédios, entre a Mesa de Frades e a Bela, arrisca-se a dar com ele. E Da Fonseca aprendeu o dom de não interferir, de esperar sempre pelo momento certo para disparar. «Muitas vezes sou transparente. Como se habituaram a mim, os músicos até pensam que sou da mobília! Acontece até às vezes nem me cumprimentarem, mas não sei se há regras para um fotógrafo se posicionar numa casa de fados.» Pode não haver regras, mas com certeza há segredos. Deduz-se que o Da Fonseca passe por observar muito, sempre num cantinho.
E os fadistas têm cuidados com a imagem? Preocupam-se em ficar bem na fotografia quando cantam, se souberem que o fotógrafo está perto. Da Fonseca responde que não. Mas há exceções. «Encontrei uma diva. Não se deveria portar como tal, mas é assim mesmo. Nem digo o nome. O que posso dizer é que o pessoal do fado é muito de capelinhas, mas no geral é gente porreira.» Para Da Fonseca o que muda num ambiente de uma noite de fados está na atitude: «A atmosfera muda quando um fadista está a cantar porque quer e não porque é pago…»
António Martins
TÉCNICO DE LUZ DE PALCO
«O fado tem uma luz própria», garante António Martins. Desde a década de 1980 que desenha e controla a iluminação para concertos de Mariza, Carminho, Katia Guerreiro, Marco Rodrigues ou Cuca Roseta. Ao longo do tempo, o técnico de luz em espetáculos apaixonou-se pelo fado e foi percebendo os seus contornos. Quando o encontramos a programar a iluminação de um espetáculo no seu estúdio em Lisboa, a Aldeia da Luz, percebemos o quão intrincada pode ser uma mesa de luz: uma imensidão de botões, ecrãs, cabos e sistemas informáticos.
Foi aprendendo a arte sozinho, depois de ter começado a trabalhar nesta área nos anos 1980. Para o fado, diz não haver propriamente uma cartilha. «Aprendemos a ver uns com os outros. E depende muito do gosto de cada um, da sua relação com a música. E é preciso gostar muito. Ninguém fica rico a fazer isto, sobretudo com o tempo que as viagens nos tomam.»
António gosta de jogar com silhuetas, sombras e contrastes. Gosta de criar uma luz silenciosa. É através dos feixes que um fado pode otimizar o seu clímax. Sempre através daquilo que o som de cada tema lhe sugere. «O fado tem de ter uma luz sagrada. Não pode ser gigantesca sob o risco de se perder.» Depois, claro, vem também o gosto do artista. «Encontro de tudo: os que não querem ver o público e os que me pedem para iluminar de maneira a que possam ver claramente a plateia.» Gostos de fadistas não se discutem.
Ana Geraldo e Tiago Cação
TOUR MANAGERS
Ana Geraldo (Katia Guerreiro), Tiago Cação (António Zambujo), Paulo Ochoa (Cristina Branco) e Paulo Marques (Ana Moura) formam a «Liga dos Road Tour Managers do Fado». Muitas vezes encontram-se no estrangeiro, quando há festivais que juntam na mesma cidade uma série de fadistas. Outras ocasiões combinam jantares em Lisboa. Ao longo dos últimos anos, Ana e Tiago ganharam uma amizade forte. Garantem que afastam ciúmes de concorrência e até admiram os músicos uns dos outros. O meio é muito pequeno para andarem às turras.
Quando lhes perguntamos pela atmosfera nos camarins, o tour manager de Zambujo é claro: «O ambiente não poderia ser mais descontraído e feliz. Obviamente que, numa equipa de nove homens, o sexo feminino é um assunto muitas vezes abordado. Talvez seja o momento mais próximo do fado ao rock.»
Ana Geraldo é capaz de fazer bainhas a um guitarrista de Katia Guerreiro que acabou de comprar umas calças ou de safar a fadista de uma invasão de fãs. Este lado da retaguarda do fado é o seu local de sonho. A primeira vez que viu Katia disse-lhe que um dia iria trabalhar com ela. Sete anos depois, cuida de tudo, desde os pormenores da vida na estrada até ao mais ínfimo detalhe do planeamento da agenda. Ana é agente, tour manager e braço direito da fadista. Nos concertos está sempre perto do palco nas três primeiras canções. Mas antes disso não a larga, apesar de saber qual o momento em que Katia precisa de estar sozinha. «Como já a conheço, sei os rituais dela e quando ela precisa do seu espaço.» Toda essa imersão como assistente pessoal de uma das divas do fado nacional é sobretudo um fator de prazer íntimo. Nada daquilo é sacrifício. «Na universidade, gozavam-me por gostar de fado.»
Pedro Castro
GUITARRISTA, PRODUTOR E PROPRIETÁRIO DE CASA DE FADOS
A Mesa de Frades, no coração de Alfama, é um dos melhores locais, atualmente, para ouvir fado. Tornou-se ponto de encontro dos músicos, onde as grandes vedetas internacionais acabam por ir sempre parar para conhecer o fado lisboeta ao vivo. Parte do sucesso da casa de fado depende da gestão de Pedro Castro, um dos maiores guitarristas contemporâneos, requisitado por vários fadistas, e também produtor e padrinho de alguns dos novos valores da canção nacional.
Aos 37 anos, Pedro nunca tem dias de folga. Não admira. Tem de organizar o tempo para tocar com Raquel Tavares, Katia Guerreiro, Ana Sofia Varela, Ricardo Ribeiro ou Cuca Roseta, entre tantos. E, pelo meio, encontrar tempo para a família. Diz que às vezes é complicado gerir as datas dos concertos e das viagens. «Quem corre por gosto não cansa. Perguntam-me depois de uma tour como é que ainda tenho forças para vir para aqui. Digo sempre que é um prazer. Funciona para nós, músicos, arriscarmos. Acaba por ser um tubo de ensaio.» Um tubo de ensaio que viu praticamente nascer Carminho. Depois, há o tal ambiente, impulsionado pelos azulejos que permanecem na antiga capela setecentista na Rua dos Remédios e decoram duelos de guitarras pela noite dentro, sempre com a possibilidade nada remota de grandes nomes do fado lá passarem e quererem cantar.
Pedro é o cicerone e programador. Se há alguém capaz de descobrir talentos na noite, é ele. Das apostas mais recentes, fala com um brilho maior nos olhos de Tânia Lã, que canta na Mesa sempre às quintas–feiras. «É uma miúda com um imenso talento. Em vez de ter gravado logo aos dezoito anos, não. Optou por esperar mais uns anitos e agora está com uma maturidade incrível.» Um padrinho, no fado, é mais ou menos isto: intuição e ouvido atento, com mais ou menos boémia.
Paulo Dias
EMPRESÁRIO
O que levou um empresário de espetáculos, com 27 anos de experiência no meio, a apostar no fado? Paulo Dias não terá descoberto a pólvora mas, como tudo na vida, foi tocado por uma espécie de chamamento. O fado foi, para ele, a descoberta de uma voz – a de Katia Guerreiro. Terá sido o falecido ator António Feio a chamar a atenção do diretor-geral da produtora UAU. Depois, ouviu-a bem, conheceu-a e foi imediato: uma vontade de a ajudar a dar um novo rumo à carreia e uma aposta forte, a nível de espetáculos e na edição de discos. Uma parceria diferente do habitual, neste meio.
«A Katia já cá estava. O que acontecia é que o seu valor de mercado não estava devidamente valorizado… Nós estivemos a lapidar um diamante em bruto.» E nesses bastidores do mercado não estará a haver uma abundância que baralha a procura? «Criam–se fadistas novos todos os dias e isso torna tudo mais complicado. É preciso lutar mais para termos destaque. Neste momento, a nossa aposta é toda no talento e no trabalho da Katia. Temos recebido propostas para concertos, sobretudo lá fora. No ano passado fizemos setenta concertos e para 2015 os números não devem andar longe. O projeto passa por veicular a imagem dela de maneira muito mais agressiva.»
Paulo acredita que o fado tem de perder a vergonha e ser percecionado como produto de massas, saindo do gueto da casa de fados. Só assim, crê o empresário, pode ser um produto comercial forte. «Fado para todos os portugueses nas melhores salas de espetáculos.» Será conversa de empresário? É, assumidamente, mas marca um paradigma diferente nestes dias de competição feroz. Seja como for, há algo neste projeto que o toca pessoalmente: «Nem todos os projetos valem pelo dinheiro que originam. Este é um deles. É uma coisa de paixão. Não tenho interesse nenhum em representar outra pessoa do fado.»
Baptista
TÉCNICO DE SOM
O mais carismático técnico de som do mundo do fado tem um visual metaleiro. Piercings, tatuagens, pera gigante. Falta apenas a longa cabeleira pelas costas, cortada recentemente. Baptista é também o tipo mais simpático e carinhoso que podemos encontrar neste meio. Começou cedo a estar atrás da mesa de som para nivelar o som dos concertos. Adotou um estilo visual de fanático de heavy-metal e nunca mudou. Só mudou o gosto musical – hoje já prefere o fado ao death metal. Tanto que até tem uma tatuagem de Fado Português, de José Régio. Esta adoção da causa fadista aconteceu por puro contacto musical. Como se o fado lhe tivesse entrado pela alma adentro. E pela pele.
Mas o técnico de 38 anos também já fez som para bandas de rock. «Os guitarristas do fado, depois dos concertos, são muito mais rock’n’ roll do que os próprios tipos das bandas de rock. Acontece tudo e mais alguma coisa… Será que posso dizer isto?!» A verdade é que os fadistas olham para ele com um carinho especial. Raquel Tavares é daqueles casos que exige mesmo que ele esteja. Não faz espetáculos sem a presença do Baptista e prefere deixar um guitarrista em casa do que o técnico de som.
O nível de detalhe do som de uma voz de fado amplificado está perto do domínio religioso. Assim como a ligação que se pode criar com um técnico de confiança. Raquel é um bom exemplo. «Um dia, em Bruxelas, de manhã, acordou-me a dizer que queria cancelar o concerto porque tinha-lhe caído a coroa de um dente. Lá tive de arranjar de urgência um dentista e ir com ela para a consulta. E obrigou-me a entrar com ela na consulta e a estar lá de mão dada…»