
O meu papel é um caderno em branco à espera de ser aberto. O cheiro característico de um caderno por estrear, com as suas folhas ainda meio coladas umas às outras, é o cheiro de algo que já existe mas que ainda não tem existência. Apenas cumpre a sua função o caderno quando o abrimos, dobramos a sua lombada, para que abra espaço àquilo que lá queremos deixar e começamos a criar um mundo novo a partir daquele espaço enganadoramente confinado.
Saber que ele lá está, reservado a nós e à espera do nosso contributo para lhe dar vida, pode ser angustiante. Talvez por isso alguns escolham evitá-lo, com medo de que o que lá deixem revele acerca de si próprios. É que o caderno, depois de usado, transforma-se em espelho e reflecte-nos a nós. O que lá fica registado é o nosso legado e será o nosso epitáfio. Se se tem medo daquilo que possa ser o resumo das nossas vidas, então o melhor mesmo é evitar o caderno em branco.
Mais fácil do que enfrentar o vazio é encostarmo-nos ao que já está pleno. De certa forma, a plenitude de uns poderá contagiar o vazio de outros, pensarão alguns. E assim vão, de caderno emprestado debaixo do braço, vida fora, lendo as lições de vidas que não são as suas e que nunca poderão entender completamente porque não as viveram.
Os cadernos emprestados são como os apontamentos que pedíamos aos nossos colegas de escola quando faltávamos às aulas. A forma como estavam organizados, a mancha gráfica, aquilo que escolheram sublinhar, as cores que usavam e até mesmo as abreviaturas das palavras, tudo era diferente do que seriam os nossos apontamentos. Muito diferente ou ligeiramente diferente, mas mesmo assim diferente. E aquela lição à qual faltámos ficava sempre incompleta porque não estivemos lá, porque não a trabalhámos, porque não a escrevemos no nosso caderno, com a nossa letra e os códigos que criámos para nos ser mais fácil aprendê-la mais tarde, quando a ela precisássemos de voltar.
Eu gosto do desafio de um caderno em branco, pronto a que escrevinhe o que quer que seja que me venha à ideia. Não tenho medo do branco, do vazio. Quero torná-lo meu, cheio de mossas e marcas de tinta e migalhas do pão com queijo que comi enquanto escrevia. Quero que o caderno fique bem gordinho, quase a rebentar, porque lá arrumo também outros papéis, canhotos de bilhetes de metro, de concertos, de peças de teatro, de guardanapos de papel onde escrevi algo de que me lembrei à pressa.
Não quero um caderno bonito, quase como se não tivesse sido usado. Algumas folhas vão soltar-se com o uso e abuso. Outras vão dobrar-se. Provavelmente, alguns trechos vão ficar esborratados por causa da caneca de chá que verteu para cima da mesa onde estava pousado o caderno aberto.
Quero um caderno à medida da vida que gostaria de viver. Cheio, a abarrotar, com alguns borrões e rasgões, compensados por outras passagens bonitas, bem escritas, com sentido. Acho que esse é o meu papel.
O meu papel é um caderno em branco à espera de ser preenchido. Assim, simples e directo, o sentido de uma vida, como o sentido de uma estrada. As curvas, derrapagens e rotundas estão lá dentro, nas suas folhas, onde por vezes me vou perdendo. Mas consigo sempre voltar a encontrar-me, preparada de caneta ou lápis em riste, para continuar a escrita até à sua última e derradeira folha. A minha única preocupação é que fique bem escrito, para que, depois de tudo, aquele documento seja um testamento fiel àquele que foi o meu papel na vida.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[Publicado originalmente na edição de 1 de março de 2015]