Esta crónica começa no quarto de um pequeno hotel de Frankfurt. As paredes são brancas e (quase) nuas. Há uma secretária de madeira diante da única janela, pela qual entra a luz triste e bela de novembro. Desejei ter tempo para ficar a escrever enquanto chovia, mas saí quase a correr e sem reparar nos pequenos aparelhos colados nas paredes, decibelímetros instalados pelo artista plástico Kevin Slavin naquele quarto 42, destinados a medir a metáfora do rasto sonoro das histórias que transitam pelos quartos de hotel. As agulhas dos mostradores pareciam, porém, indiferentes ao silêncio da minha presença. Pior do que isso, estavam surdos aos ecos do passado e aos espetros que habitam o bairro burguês de Bockenheim.
O pequeno jardim do cruzamento da Robert-Meyer Strasse com a Emil-Sulzbach surgiu coberto de folhas mortas, rodeando a caixa de vidro do memorial dedicado a Theodor Adorno. Percebia-se perfeitamente, ainda assim, o labirinto que Vadim Zakharov traçou no chão em volta do aquário-escritório imaginado para celebrar o centésimo aniversário do filósofo alemão: uma secretária e uma cadeira sólidas, a campânula de um candeeiro, duas folhas da Dialética Negativa, um metrónomo. Ocorreu-me o óbvio: a frase em que Adorno defende ser impossível e bárbaro escrever um poema depois da barbárie de Auschwitz, mas também, e apesar disso, a evidência, ali tão clara, de que a beleza sobrevive a todos os holocaustos, assaltando-nos sob a forma de uma praça outonal ou de um verso luminoso que alguém pudesse escrever ali sentado.
Adiante, já na Kettenhofweg, reparei no paralelepípedo de bronze encrustado no passeio diante da casa onde morou Johanna Adler, a cantora judia. Foi forçada a deixar a sua bela casa em 1940, talvez empurrada para a rua em trajes menores. Deportada em 1942 para o campo de concentração de Theresien, morreu em Treblinka poucos meses depois, a 26 de setembro, com 74 anos. Johanna era soprano – tinha cantado no funeral de Clara Schumann, pianista e esposa do famoso compositor –, e detenho-me um instante a imaginá-la como um fantasma que ainda cantasse o Requiem, de Schumann, na manhã tranquila de Frankfurt, Requiem aeternam dona, enquanto as folhas mortas flutuam um pouco antes de caírem no chão. Revejo todas as imagens de todos os holocaustos, todo o horror de mundo, enquanto a memória de Johanna Adler repete aquele Requiem aeternam dona e eu não entendo como podem as agulhas dos decibelímetros do quarto 42 não registar o rasto sonoro de tanta história.
[Publicado originalmente na edição de 29 de novembro de 2015]