Marta, my dear,
Escrevo a 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição. Agnóstico e possessivo, reformulo – dia da minha Conceição. Porque era esse o nome de minha mãe fora dos palcos. Junte-lhe a triste história da miúda que a honrou com o seu desabafo; o riso traquina que hoje no café enumerava os pedidos reservados a um Pai Natal, vivendo de braço dado com o menino Jesus; as luzes que se vão acendendo pelo meu Porto e adivinhará porque deslizam os meus neurónios rumo a família e Natal.
Na minha infância passada em casa dos avós paternos. Vasculho o álbum das fotografias e ali estou, o mais novo do clã, olhar apreensivo, talvez por isso a face de minha mãe se incline, alucino murmúrio tranquilizador. Éramos treze e a avó Manuela cedia a superstição clássica, reservava mesa privada para os netos algures entre a sala e a cozinha, apeadeiro privilegiado para a rapinagem, muitas travessas não chegavam virgens à mesa dos «grandes».
Revejo mentalmente a cena. O aparador, os cristais, as portas sobre o jardim, mas sobretudo o velho rádio, que se desdobrava em serviço público – à tarde seguia, obediente, as peripécias da novela do Tide; à noite sussurrava as notícias da BBC, triste é o país que precisa de sintonizar Londres para saber o que se passa dentro das suas fronteiras.
O tempo, inexorável, faz-nos cruzar outras, os avós morreram. E com eles algo no coração de meu pai. Uma conspiração de silêncio protegia-lhe a dor, eu e minha mãe jurávamos a pés e rostos juntos que aquela noite era igual a todas as outras, tão diversamente igual que os três nos deitávamos com as galinhas. O Natal, esse, imitou os ursos e entrou em hibernação. Até chegarem os meus filhos.
O coração tem muitos quartos, dizia García Márquez, e a saudade teve de dar as boas-vindas a novo inquilino, o encantamento pelos petizes. Assim se tece uma lenda familiar – os patriarcas eram outros à cabeceira da mesa, os comensais em menor número, a casa sempre tripeira mas no Bonfim, e contudo os risos eram primos direitos dos da minha infância, tudo está bem quando acaba bem.
O que nem sempre acontece aos casamentos. E as noites de Natal sofrem os danos colaterais provocados pela falta de ubiquidade dos miúdos, que, ano sim, ano não, nos caem nos braços mas pelo telefone.
Meu pai acumulava duas saudades, minha mãe desleixava as dela, preocupada com as do marido. Entre eles e os miúdos, bem prensado, eu era uma espécie de tosta mista de alívio e culpa, não me ocorria qualquer iniciativa, já baloiçara demasiado o barco. Foi meu pai a fazê-lo. Com o seu talento para transformar decisões próprias em oficiais consensos, disparou: «Meu querido filho, penso que estamos de acordo, sem os nossos meninos nada disto faz sentido.» E o Natal voltou a hibernar ano sim, ano não.
E quase três décadas volvidas, a recordação desses momentos de luto pesado pela ausência dos garotos é tão viva, que em verdade lhe digo, Marta – gosto muito da canção do Pedro Abrunhosa, mas juro-lhe que não é preciso estar emigrado na Alemanha para ansiar pelo refúgio dos braços da nossa mãe.
[Publicado originalmente na edição de 13 de dezembro de 2o15]