Joelhos não esfolados (e boca sem arsénico)

Notícias Magazine

Flaubert teve indigestões enquanto escrevia o envenenamento de Bovary, tal era vívida, para ele, a cena que retratava ou imaginava. Sentia o sabor do arsénico na boca e, depois de jantar, vomitava.

Este episódio, ainda que «meramente» literário, deixa-me invejoso. Não pela literatura nem pela maneira de a viver, mas pela capacidade de empatia. Não deixo de achar estranho que nenhum de nós, dos que viram aquele refugiado cair no chão com o filho nos braços (há quanto tempo é que isso foi?), não tenha acordado com os joelhos esfolados. Eu senti vergonha por verificar que os meus estavam ilesos (mesmo que os tivesse sentido momentaneamente ultrajados). Gostava de ser como Flaubert. Sentir veneno na boca, joelhos esfolados. Não esquecer, ter feridas por sarar.

Não sei quanto tempo demora uma pessoa a cair assim, mas leva com certeza séculos, e muito tempo de desumanização e essa é uma queda do tamanho de um abismo. No entanto, caem apenas segundos num plano televisivo. Caem apenas segundos na nossa alma e são substituídos, como nos jogos de futebol por outro jogador, algo como a necessidade de comer bagas goji. Há ainda alguém que vomite depois de jantar por sentir o arsénico na boca?

Sei que foi um refugiado que já caiu há muito tempo, que estou desatualizado para os padrões sociais e para a sensação de arsénico possível numa boca sã, mas, na verdade, ele continua a cair. E temo, infelizmente, que continue a cair durante muito tempo. A rasteira que lhe pregamos, porque todos temos o nosso pé estendido, não deixara de ser uma realidade geopolítica.

Já esquecemos isso, por vários motivos. Pode ser que o tenhamos feito pela urgência de valores maiores, mas também o poderemos ter feito pela necessidade de higienizar o nosso corpo num ginásio qualquer, com uns antioxidantes milagreiros, e, nos intervalos, indignarmo‑nos num post do Facebook.

Chesterton receava mais o fortalecimento dos pequenos valores do que o enfraquecimento dos grandes. Tomemos este exemplo, esta frase: «O tabaco é para o homem um dos mais perigosos venenos.» Poderia ser de muita gente, ter muitos autores, mais ou menos modernos, mas Simon Leys relembra‑nos, muito bem, o seu autor: foi Hitler.

[Publicado originalmente na edição de 8 de novembro de 2015]