Gosto de famílias grandes, com algazarra, comida e bebida à volta. Não, não pertenço a organizações de famílias numerosas e nem a vida de hoje parece compatível com os cinco e seis filhos que eram habituais. Não é uma declaração ideológica, é a constatação de um facto: gosto de ter muitos irmãos, primos, tios, sobrinhos, netos, crianças a fazer tropelias, muita gente a conversar, a rir, com opiniões e opções diversas mas juntos nas raízes.
Daí que me pareça inimaginável a família que a política chinesa impôs nas últimas décadas, um filho por casal, e que agora, numa decisão tão histórica como inevitável, acaba de ser mudada. Passam a ser permitidos dois filhos, num país gigantesco onde filhos únicos vão chegar ao poder rodeados de filhos únicos, e mais do que uma geração não tem referências de relações familiares alargadas.
Pode perceber‑se a intenção inicial, há 35 anos, no pavor de uma sobrecarga demográfica catastrófica. Está calculado que com esta medida foi evitado o nascimento de 400 milhões de pessoas. Como tantas decisões tomadas sem precedentes históricos, esta foi uma imposição cujos efeitos a médio e longo prazo só recentemente se fizeram sentir. Uma população envelhecida, 35 anos de gerações egoístas, pelo menos 13 milhões de crianças nascidas sem registo, muitíssimos milhões de abortos forçados. Uma imposição do Estado numa matéria tão privada e íntima é-nos inaceitável, mesmo que tenhamos chegado, entre nós, a uma taxa de fecundidade de 1,21 crianças por mulher que poderíamos apelidar de chinesa. Por outras razões, com outras implicações, não é essa a história de hoje.
Comecei por falar na família porque, ao pensar no caso chinês, imaginei o quadro de vidas sem irmãos, tios, primos. Crescer com irmãos é uma aprendizagem do que vai acontecer quando uma pessoa chega ao mundo lá fora. Treina‑se, da maneira mais divertida e mais dura, a necessidade de partilhar, a luta para conseguir um lugar, a habilidade para tornear a lei do mais forte, a elaboração de sistemas flexíveis de alianças. Um irmão começa por ser um incómodo, um intruso, e se as coisas correrem bem essa sensação acaba ao fim de, sei lá, vinte, trinta anos. Com esta última frase estava a brincar, claro, até porque as cumplicidades da infância com irmãos e primos, e depois com os amigos da escola e do bairro, são um manancial de recordações ternas, e até as zangas e os «foi ele!», «foi ela!», as roupas usadas e os brinquedos destruídos me fazem sorrir.
Tenho uma família enorme, já o disse, e felizmente alguns primos têm casas grandes onde cabemos todos. Quando há condições para isso, juntamo‑nos e fazemos a festa, contrariando o rumo normal das coisas de os encontros só acontecerem em funerais.
Os funerais. Já só tenho tias, os tios morreram todos antes delas. Ainda há poucos dias perdi a minha tia enfermeira, que telefonava no meu aniversário e no da minha mãe, irmã dela, e no Natal e na Páscoa, e terminava sempre a conversa com lágrimas de saudade na voz. Já não posso ligar‑lhe nos anos dela. No ano passado, fui pensando ao longo do dia, tenho de telefonar, tenho de telefonar, mas passou‑me. Quando lhe pedi desculpa, respondeu‑me que eu estava enganada, que tínhamos conversado longamente. Tia, tenho a certeza de que não. E pela primeira vez em muitos anos acabámos com lágrimas de tanto rir, porque ela tinha estado a tagarelar com outra como se fosse comigo. Deve haver aí alguém a pensar que estou completamente senil, concluiu com grandes gargalhadas. E só por esse riso valeu a pena eu esquecer‑me de lhe dar os parabéns.
[Publicado originalmente na edição de 8 de novembro de 2015]