Não deixa de ser interessante que num tempo em que todas as vozes que se conectam à rede podem ser ouvidas e onde os diálogos se podem multiplicar em murais e redes mais ou menos sociais, se tenha criado uma espécie de contradição dessa liberdadede expressão, um fenómeno a que chamo de autocensura digital.
Quando uma palavra mal utilizada ou uma frase retirada do seu contexto podem gerar uma onda de histeria a fazer lembrar o episódio das bruxas de Salém, com ameaças, insultos e diatribes várias a serem gritadas em maiúsculas de teclados anónimos, julgados em praça pública e rotulados os seus «culpados» de persona digital non grata, o resultado é a censura às próprias ideias ou pensamentos, por medo das reacções que daí possam advir.
O mundo do «politicamente correcto» começa a entrar num universo montypythiano quando os nobres motivos que inspiraram a sua existência (o cuidado em não rotular, incentivar ou criar estereótipos, principalmente, rótulos com valor negativo em relação a determinados grupos da população), são deturpados ao ponto de servirem agora de dissuasor de qualquer tipo de discurso que pretenda ser mais acutilante. A aparente liberdade de dizer vê-se acossada face às infindáveis limitações de como dizer.
Claro que os mais intrépidos enfrentam a tempestade digital que as suas ideias possam criar com bravura e determinação. Ou, então, mudam os seus perfis para privado e seleccionam muito bem os «amigos» digitais para criar um grupo que tenha ideias parecidas com as suas próprias ideias.
Daí resulta a chamada «pescadinha de rabo na boca»: por não se saber já discutir ideias de forma sã e civilizada, as pessoas começam a juntar-se em grupos que pensam da mesma forma e partilham os mesmos valores, desaprendendo, dessa forma, as regras elementares do debate de ideias, o que leva a que, quando confrontadas com ideias diferentes das suas, não as saibam debater de forma salutar, resultando num confronto violento que leva à alienação de mais pessoas, que acabam por se juntar em grupos que pensam da mesma forma.
Hoje não se sabe debater. Não se aceita com naturalidade que haja pessoas que pensem de forma diferente da nossa e não se quer gastar tempo a ouvir os seus argumentos. Isto prender-se-á, porventura, com a crise de empatia que atravessamos na nossa civilização.
Pormo-nos na pele do outro é um exercício impossível para cada vez mais pessoas, sairmos de nós em busca do outro, um movimento impensável. O individualismo abomina o colectivo, o pluralismo, ignorando que o todo nunca é só um: é um conjunto de muitos que vive de forma harmoniosa e se completa para que possa formar uma unidade a partir da pluralidade.
O mundo não se torna melhor por todos pensarmos da mesma forma, o mundo avança por pensarmos de forma diferente. É uma pena que o ensino valorize precisamente o oposto e incuta nos seus alunos a ideia de que devem trazer a lição estudada e memorizada para poderem avançar, ao invés de questionar livremente as ideias que são apresentadas para que possam criar as suas próprias ideias e saber defendê-las, pela vida fora.
Na verdade, não é tão inocente assim o caminho que se quer traçar no ensino: formar fazedores em vez de pensadores serve na perfeição o poder político e económico e, nas escolas e universidades deste mundo, preparam-se profissionais tarefeiros acríticos, não cidadãos criativos e livres-pensadores.
Pode parecer desajustado relacionar os programas de ensino com a forma como se comportam os cidadãos nas redes sociais digitais, mas não me parece que o seja.
De qualquer das formas, o que me parece prevalecer em ambos os casos é a noção de que o perigo não está nas ideias nem no debate; o perigo está no silêncio e no medo.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
3-5-2015