Entrevista exclusiva com a fadista Celeste Rodrigues, de 92 anos e com o bisneto Gaspar Varela, de 11 anos – que aprendeu a tocar guitarra por causa da bisavó –, no dia em que a fadista recebe a homenagem da cidade do Fundão, de onde é natural, pelos 70 anos de carreira. Quatro horas de conversa, com um fado pelo meio, sobre a vida que não para. Celeste tem mais um disco na forja, o 60º. Vendaval de Sonhos (nome provisório) com músicas e poemas inéditos, pode sair ainda este ano e com Gaspar a acompanhá-la.
Pouco os separa, e certamente não são os oitenta anos de diferença. Gaspar revê-se nas histórias da bisavó, Celeste reinventa-se ao lado do miúdo de 11 anos, que aos quatro, desdenhando os brinquedos, sonhava tocar guitarra para acompanhar a fadista. Amor correspondido, selado na paixão pela música, cumplicidade traduzida na atenção que dedicam um ao outro, nos olhares e nas graças que trocam, na ternura. Aos 92 anos, a fadista continua a cantar. E pinta. «Não sei o que é ser velha, estou cheia de cor por dentro». O talentoso Gaspar ouve, orgulhoso.
O bisneto Gaspar aprendeu a tocar para acompanhar a bisavó. Que homenagem.
CELESTE RODRIGUES (CR)_Ele tocava uma guitarra de plástico para me acompanhar. É muito bonito, sim.
GASPAR VARELA (GV)_Não era uma guitarra, avó. Era uma raqueta. Só depois é que arranjei uma viola de plástico.
Quando surgiu a ideia de acompanhares a tua bisavó?
CR_Desde muito criança, não foi, Gaspar?
A Celeste cantava-lhe, em pequeno?
CR_Cantava, claro. Os fados, ou aquelas coisas que se cantam nas escolas.
Que fado gostavas mais de ouvir?
GV_Adorava todos os que a minha avó me cantava.
E também sabes cantar?
CR_Isso queria ele. Mas não tem tanto jeito como para tocar. Pelo menos até agora. Ainda vai mudar de voz.
Gostavas de saber cantar, Gaspar?
GV_Não, cantar não é muito o meu reportório.
Assina Varela e não Rodrigues. O que acha a avó?
CR_Acho melhor assim. Já eram Rodrigues a mais. Varela está bem. O bisavô era ator (Varela Silva), o pai, o meu neto Diogo, ator e realizador, por isso, também está dentro do meio.
Neto Diogo que em criança desfazia as malas da avó quando ela tinha concertos.
CR_ Queria que eu o levasse comigo e muitas vezes levava-o. Quase sempre, até.
É quem ainda hoje lhe trata da agenda.
CR_ Na altura em que me desfazia as malas tinha uns 6 anos. Temos andado sempre juntos. Agora diz que vai comigo porque eu não falo línguas [risos].
Mas fala.
CR_ Falo muitas línguas e consigo andar sozinha. Sou pouco de me atrapalhar.
Nem aos 92 anos?
CR_ Não sei o que é ser velho. A gente tem a idade que quer e eu não me sinto velha. Tenho uma cabeça jovem e vontade de fazer tanta coisa.
Por exemplo?
CR_ Oh, tanta coisa. Passear, criar.
GV_Dar um mortal. Já deste um mortal, avó?
CR_Não, nem quero dar.
UM DISCO ESPECIAL?
CR_ VOU AGORA FAZER UM.
O 60.º DISCO.
CR_ NÃO SEI SE SERÁ O ÚLTIMO. ESPERO SEMPRE QUE NÃO. TEM POEMAS NOVOS DO RICARDO [LOURO], UM JOVEM DE 30 ANOS QUE ESCREVE BEM, E MÚSICAS DO JORGE FERNANDO, UM BOM COMPOSITOR.
E VAIS PARTICIPAR, GASPAR?
GV_ ACHO QUE SIM. JÁ PARTICIPEI EM TRÊS DISCOS DA MINHA AVÓ.
CR_ COMIGO FOI SÓ EM DOIS.
GV_ TRÊS, AVÓ.
CR_ OH DIABO, ENTÃO ESTOU MESMO A FICAR VELHA.
GV_ ESTÁS NADA. PODEMOS FAZER AINDA MUITAS COISAS MAIS.
O que gostavas de fazer com a tua bisavó?
GV_ Gostava de viajar para fora de Portugal.
CR_ Sais ao teu pai.
Ele tem o gene Rodrigues?
CR_ Tenho muito orgulho nele. Se é mais Rodrigues ou mais Varela, não sei. Sei que tem talento.
Como era a Celeste, com a idade dele, já se percebia o talento?
CR_ Andava sempre a cantar mas do que me lembro é que com a idade dele, 11 anos, já estava a trabalhar.
A descascar ervilhas?
CR_Isso ainda foi antes, nos meus 9 anos, na fábrica de conservas em Alcântara. Foi o único trabalho que poderia ter, mas não se pense que é fácil descascar cinco quilos de ervilhas. Mais tarde, já com 11, trabalhava numa fábrica de bolos, em Santos.
A fazer o quê?
CR_Punha os bolos nos tabuleiros que iam para as pastelarias e entregava a correspondência do escritório.
GV_E comias bolos.
CR_Podia comer à vontade. Na primeira semana, enchi os bolsos da bata mas pouco depois fartei-me. Nem os via e ainda hoje é assim. Ainda bem para a saúde.
Tem uma vida muito regrada?
CR_Nada. Até me alimento mal. Só gosto do que não devo – toucinho assado, chouriços, muitos salgados. Felizmente, sou saudável.
Ainda cozinha?
CR_Vivo sozinha e por isso cozinho muito raramente. Uma açorda, um arroz de grelos, isso faço porque gosto muito. Mas, por regra, vou comer a um restaurante perto de casa.
É boa cozinheira?
CR_Não e detesto cozinhar.
GV_Fazes umas omeletas boas, avó.
Gaspar, tens 11 anos, a tua bisavó 92. O que já aprendeste com ela?
GV_Se não tivesse a minha avó nunca tocaria guitarra. Só isso é muito importante.
CR_Ele tem os pais que lhe ensinam o que deve saber. Eu tenho a parte simpática. E também aprendo com ele. Faz-me sentir mais jovem e se calhar é uma das razões para a minha longevidade.
QUANTAS VEZES POR SEMANA TENS AULAS DE GUITARRA PORTUGUESA?
GV_ DOIS DIAS POR SEMANA.
CR_ O PROFESSOR SABE LIDAR COM ELE. ELE É UM POUCO DIFÍCIL PORQUE NÃO GOSTA DE NADA. A ÚNICA COISA DE QUE GOSTA É DE TOCAR GUITARRA.
GV_ NÃO AGUENTO ESTAR SEM A GUITARRA.
QUAIS SÃO OS TEUS PONTOS FORTES COMO GUITARRISTA?
GV_ APRENDER RÁPIDO.
CR_ É A ÚNICA COISA QUE APRENDES RÁPIDO.
GV_ OS MEUS PAIS DIZEM SEMPRE QUE A PRIORIDADE É A ESCOLA. MAS É A GUITARRA QUE ME VAI DAR UMA CARREIRA E NÃO A ESCOLA.
CR_ NÃO DEVES PENSAR EM TERMOS DE CARREIRA. DEVE PENSAR-SE, SIM, NO QUE SE GOSTA DE FAZER, NO QUE DÁ PRAZER. ACHO QUE NO FUNDO É O QUE TU QUERES DIZER.
Nunca se considerou uma profissional?
CR_Nunca. Sempre disse que sou uma artista de trazer por casa. Chego lá e canto, venho-me embora e esqueço-me. Até aparecer outro concerto. Mas também é verdade que não vivo sem cantar. Desde criança.
Voltemos à Lisboa dos anos 1930. Era menina, descascava ervilhas. A família acabara de chegar a Lisboa, ao Bairro de Alcântara, vinda do Fundão. A Celeste tinha 5 anos e reencontrou a irmã Amália, três anos mais velha, que já vivia em Lisboa, em casa da avó, desde os 4. Como foi o reencontro?
CR_Maravilhoso. Não nos lembrávamos uma da outra, só das fotografias, e a partir daí começámos a andar sempre juntas, éramos o roque e a amiga. A Amália ainda viveu em casa da minha avó até aos 12 anos, mas era casa com casa, praticamente. Ela achava muita graça ao meu sotaque beirão. Ria e ria quando me ouvia falar.
Sempre foram parecidas.
CR_Passámos várias vezes por gémeas. Eu era um pouco mais alta e mais magra, mais esguia. A Amália era mais roliça. Eu subia às árvores, ela não. Tentou uma vez, depois, coitadinha, não conseguiu descer. Tive de a ajudar. A asma que teve na infância também não ajudava.
Entre os dez irmãos, cinco raparigas e cinco rapazes, como se distinguia?
CR_Eu era a brincalhona. Gostava de jogar, de brincadeiras físicas, de brincar na rua com os outros.
Que memórias guarda do Fundão?
CR_Lembro-me de muito pouca coisa. De passar todo o dia na rua atrás de um porco enorme que tínhamos e que não era para comer. Chamava-lhe o Chirineu. E dos dois cães da minha mãe, que eram lindos.
E as primeiras recordações de Lisboa?
CR_A escola primária em Campo de Ourique onde andei 15 dias. Depois, como não levava o dinheiro, mandaram-me embora. Esse foi o primeiro desgosto. Queria tanto aprender a ler. Acabei por fazer então a quarta classe numa escola do Jardim das Amoreiras. Como tenho uma imaginação muito forte, era boa nas redações. Contas e matemática nunca foram o meu forte, mas aprendi muitas línguas.
GV_Também não gosto nada de matemática.
Gostas mais de que matérias, Gaspar?
GV_Educação física, português e história.
CR_Por falar em história, também escrevi histórias para crianças. Pensava nelas durante as viagens para depois contar às minhas filhas e, mais tarde, aos meus netos e bisnetos. A História das Duas Árvores, A Princesa do Cabelo de Cor de Fogo, A Bolinha de Sabão e a Bolinha do Lago Verde… Era uma maneira de substituir as cartas. É muito difícil escrever uma carta. Nunca se sabe por onde começar.
Nunca pensou publicar essas histórias?
CR_Escrevo para mim e para os meus. O mesmo faço com os poemas. São só meus. Porque não me atrevo. Cantar, sei que dou um jeitinho, mas não sei escrever.
O que levou a família a deixar o Fundão?
CR_No Fundão a nossa família era remediada. Os maiores problemas surgiram em Lisboa. Nas cidades não há as possibilidades da província nem a ajuda de familiares. O meu pai era músico numa banda, e a minha mãe trabalhava no cais da Ribeira, distribuindo a fruta que recebia dos primos do Fundão, mas as possibilidades não eram as mesmas. Viemos para Lisboa por causa da minha irmã mais nova, que nasceu com um problema nos olhos. Prometeram que em Lisboa haveria cura e de facto ela curou-se. Mas aos 6 anos e meio teve uma paralisia e morreu. Eu estava na igreja a rezar por ela quando soube da sua morte. Nunca mais rezei.
Perdeu a fé.
CR_Para sempre. A muitos padres fiz a pergunta «porquê?» Mas nunca souberam responder. As pessoas acreditam por necessidade ou porque são ensinadas a acreditar. Eu não. Quando estou muito angustiada penso na minha mãe.
A mãe é uma figura central.
CR_Muito. A minha mãe e o meu pai eram fantásticos, pessoas humildes e maravilhosas. Tiveram dez filhos, perderam cinco em vida. Criaram-nos num bairro de estivadores e varinas, no meio de miúdos como nós, mas nunca deixaram que usássemos palavrões ou gíria. Sempre falámos um português escorreito. Um dia disse à minha irmã Amália que fosse àquela parte, levei com uma malagueta na boca. Foi a primeira e a única.
Gaspar, conheces as história dos teus trisavós?
CR_Não vou dizer ao miúdo estas coisas.
GV_Eu sabia que a tua irmã mais nova tinha morrido, avó.
Ao contrário de Amália, muito crente, a Celeste sempre questionou.
CR_Sempre gostei de entender as coisas, de fazer perguntas. De ler… Gosto incutido cedo pelo meu pai.
Nunca pensou ir além da quarta classe?
CR_Tinha de trabalhar. Depois de ter começado a cantar faltava-me tempo. Mas fui adquirindo conhecimento com livros bons. Sou muito curiosa. Adoro poesia, a poesia deixa-me louca.
Poetas preferidos?
CR_Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Pedro Homem de Melo.
E também escreveu os seus poemas.
CR_Na brincadeira. É que nem me atrevo. Eu sou tão alegre, tão alegre e bem-disposta, falta-me a introspeção necessária para escrever poesia. Sou alegre, positiva, acredito sempre que o dia de amanhã vai ser melhor.
A sua irmã Amália afirmava-se «uma pessoa muito aberta ao assalto de ideias negativas». E era até supersticiosa. A Celeste também é?
CR_Não acredito nem em Deus nem em bruxas. Atiro tudo para trás das costas. E nunca me exalto. Quando oiço coisas que me desagradam, fecho. Deu trabalho a conseguir mas agora é fantástico.
E tu, Gaspar, também és assim?
CR_Não. Ele refila.
GV_Pouco.
CR_Quando te magoam, resmungas.
E à Celeste, houve quem a magoasse?
CR_Não deixo que isso aconteça. Aprendi isso num meio em que por vezes há quem possa ter menos sensibilidade. Se bem que os meus colegas são muito meus amigos, não dizem mal de mim.
Mas é uma mulher seletiva.
CR_Muito. Só vou nos grupos que quero.
Como é hoje a sua relação com o meio musical?
CR_Foi sempre boa. Gosto de me sentir ao pé da juventude.
E agora há muitas vozes novas.
CR_Há muitas vozes novas mas ninguém pode sentir aos 20 como aos 40. Alguns estão apenas preocupados com a voz, nem querem saber o que diz o poema. Dizem o poema mas não é aquela coisa de que o fado necessita. Os 40 é a idade ideal para se entender o que é o fado. O fado e quase tudo o mais.
E há vários fados?
CR_Só há um fado e duas maneiras de cantar: bem ou mal. E repito: nasce-se fadista. Não se pode aprender a sentir o fado. Ou se sente ou não se sente. O que eu sinto quando canto não vem com a técnica, nem a afinação faz um fadista. Fado é emoção. Fado é isso.
Como é que uma mulher alegre e tão otimista sente o fatalismo e a tristeza do fado?
CR_Fado é beleza e a beleza não é triste. Há um fatalismo que nos deixa bem. Os poemas bonitos fazem-me mais bonita. Até porque, diz bem, eu sou o contrário de uma pessoa triste e vem daí este meu apego à vida.
E tu, Gaspar, nasceste guitarrista?
GV_Acho que sim.
A grande voz era a da mãe, Lucinda da Piedade Rebordão?
CR_Melhor do que a das filhas. A voz chegava onde a minha mãe quisesse e ouvia-se a quilómetros de distância. O meu pai tocava cornetim e a minha mãe acompanhava, com folclore da Beira. Nunca cantou fado.
Porquê?
CR_Cantava um mas só em casa. «Um beijo venenoso, demorado», dizia o refrão muito triste. Foi a minha mãe quem despertou em nós o interesse pelo canto. A música esteve sempre em nós, desde a barriga dela. E o meu pai, sapateiro, era músico, o meu avô era músico e o meu bisavô era músico.
Quando se apercebe da sua voz?
CR_Quando as pessoas começaram a elogiar. E nós também temos ouvidos. Sempre achei que tinha uma voz meiguinha, não acordava ninguém e isso já é bom.
Dos fadistas mais jovens, quem gosta de ouvir?
CR_Vários. Gosto mais de umas vozes do que de outras, há formas de cantar que não me dizem nada mas quem sou eu para dizer que o fado deve ser cantado assim ou assado. Eu sei o fado que eu sinto. Isso sei.
QUAL FOI A GRANDE MAIS-VALIA DE AMÁLIA?
CR_ A SENSIBILIDADE E A HUMILDADE. NUNCA SE CONVENCEU DE QUE ERA BOA, NUNCA SE JULGOU MELHOR DO QUE NINGUÉM.
AMÁLIA SÓ HÁ UMA?
CR_ E VAI SER DIFÍCIL APARECER OUTRA TÃO DEPRESSA. NÃO HÁ ESCOLAS, NÃO SE ENSINA A SER AMÁLIA. NEM SE ENSINA FADO. O FADO NÃO É MECÂNICO.
QUAL FOI A GRANDE MAIS-VALIA DE CELESTE?
CR_ A HUMILDADE. TENTO DAR O MEU MELHOR AO PÚBLICO, QUE TEM SIDO MARAVILHOSO COMIGO.
E nem sempre cantou nas melhores condições. Com um braço partido, por exemplo.
CR_ Um braço partido, uma costela partida, febre alta… Mas eu costumo dizer que sou da primeira apanha.
Não dá de beber à dor?
CR_ Não sou – nunca fui – chorona. Nem quando apanhava sovas da minha mãe. Ela bem dizia «chora rapariga» mas eu, nada. Chorar para quê? O choro não resolve nada. Ao fim de setenta anos de carreira e 92 de idade é claro que há dias em que o corpo dói. Mas esqueço-me das dores.
Foi com esse espírito de sacrifício que se disponibilizou para doar um rim à irmã mais nova, Maria Odete?
CR_Fiz o que era natural.
Sim, mas tinha já duas filhas, uma família. Não temeu a morte?
CR_A minha irmã precisava do rim para sobreviver e mal percebi que o meu era compatível disse logo que sim. Nem foi preciso os meus irmãos fazerem os testes, se bem que qualquer um deles, no meu lugar, teria feito o mesmo. E não foi nada de especial.
Lembra-se desse dia, em Boston?
CR_Lembro. Eu estava em pânico, com medo da operação, mas o meu amor pela minha irmã era muito mais forte do que o medo. A Maria Odete viveu 45 anos com o meu rim e teve três filhos. Morreu no ano passado. Sempre me agradeceu, sempre me disse que me devia a vida. Não sei se isso fez de mim melhor pessoa. Mas sei que gostava de ser recordada assim, como uma pessoa boa, amiga. Gosto mais de mim como pessoa do que como artista. Artistas há muitos.
VOLTEMOS AO PALCO. RECORDA-SE DE UM ESPETÁCULO PARTICULARMENTE DIFÍCIL?
CR_ SÃO TODOS TÃO DIFÍCEIS. AS PERNAS TREMEM E A BOCA SECA. NÃO HÁ ENTRADA EM PALCO QUE NÃO SE TEMA, MAS MAL AS GUITARRAS COMEÇAM O MEDO ABRANDA OU PASSA. ESTIVE HÁ TRÊS ANOS NO CARNEGIE HALL, EM NOVA IORQUE, E AQUILO É ENORME. JESUS! MAS JÁ NÃO SOFRO DA MESMA MANEIRA. JÁ DEI O SUFICIENTE, SE AGORA NÃO PUDER DAR TANTO, PRONTO. JÁ NÃO TREMO DA MESMA MANEIRA. MAS NO INÍCIO… REPARE, MAL COMECEI A CANTAR FUI LOGO PARA O ESTRANGEIRO. NÃO É FÁCIL.
FOI DAS PRIMEIRAS ARTISTAS PORTUGUESAS A INTERNACIONALIZAR- SE. AS PESSOAS TENDEM A ESQUECER ISSO?
CR_ NUMA ALTURA EM QUE SE IA APENAS PELO TALENTO. ÍAMOS COM OS GUITARRISTAS E MAIS NADA. A MINHA IRMÃ ABRIU PARA TODOS MUITAS PORTAS. TALVEZ SE ESQUEÇAM DISSO E TAMBÉM QUE EU FUI DAS PRIMEIRAS. POR EXEMPLO, TAMBÉM FUI A PRIMEIRA A IR À TELEVISÃO. AS RAZÕES DO ESQUECIMENTO DESCONHEÇO.
E a ti, Gaspar, assusta-te o público?
GV_Nada.
CR_Eu digo que ele tem cara de guitarrista. Muito compenetrado.
Tens truque para te concentrar?
GV_Se já sei bem o fado, fecho os olhos.
Têm um preferido?
GV_O Fado Menor.
CR_Por vezes o público gosta do que não gostamos. Olha a Mala fez tanto sucesso e eu não gosto da cantiga. Se tiver de escolher um fado escolho também o Fado Menor.
E tiques de palco?
CR_Vários. A roupa tinha de ter bolsos porque eu não sabia onde meter as mãos, e quando não tinha bolsos carregava na barriga. Também tinha por hábito encostar a cabeça à parede, chegando a ficar com dores da pressão. Ou mexia nas pernas ou puxava para baixo, com força, as pontas do xaile.
Começou em 1945, no Casablanca, tinha 22 anos. Amália já cantava e tinha 25. Bonitas e talentosas. Como era a vossa vida? Provavelmente cheia de pretendentes e apaixonados.
CR_Não éramos bonitas mas éramos girotas. E havia, claro, muitos admiradores. Mas, em miúdas, a Amália roubava-me os namorados.
Porquê?
CR_Eu não tinha figura, era um carapauzinho. Mal a conheciam, cheia de formas, trocavam. Só comecei a deitar corpo à custa do remo. Pratiquei dos 12 aos 17 anos no Clube Naval, e adorava. Depois, já tinha outro corpo. Mas muitos admiradores nem se atreviam a falar. Seguiam-nos e só mais tarde vínhamos a saber, por colegas, da paixão. Outros escreviam cartas com propostas de casamento. Era engraçado.
Gaspar, gostas de ser famoso? Na escola, por exemplo?
GV_Não sou envergonhado nem tímido.
CR_É um descaradão.
GV_Os meus amigos já me conhecem há muito tempo. Muitos deles há onze anos, já estão habituados. E não sou tão conhecido assim.
Onde te imaginas daqui a dez anos?
GV_A acompanhar os fadistas pelo mundo fora, de preferência a minha amiga Teresinha Landeiro, de quem gosto muito.
Sabes quem foi a primeira paixão da tua avó?
GV_Foi o toureiro, não foi, avó?
CR_Sim, o Zé [José] Casimiro, irmão da Mirita Casimiro. Tinha 17 anos – ele 27 – e fiquei completamente louca. Namorámos durante três anos. Depois juntámos os trapinhos.
Nos anos 1940 não era comum uma miúda juntar os trapinhos.
CR_Talvez fosse um pouco avançada. Para mim, sempre bastou gostar. A única coisa que não quis ter fora do casamento foram os filhos, por causa apenas de uma lei que os dava como filhos de pai incógnito. Isso não. Mas atenção: também já não era uma miúda. Tinha 20 anos. Vivemos juntos durante dez e quando estávamos para casar separámo-nos.
Porquê?
CR_Um mal-entendido. Ele não gostou que um jornalista tivesse anunciado o nosso casamento e eu vi nisso o medo de assumir o passo. E acabei. Quando muitos anos depois o fui visitar no Hospital da CUF tivemos finalmente a conversa que desfez o equívoco.
Quando corta é radical?
CR_Sim. Se bem que já antes nos tínhamos zangado. Nessa altura retomámos.
Foi durante essa zanga que esteve no Brasil, com a Amália?
CR_Um ano no Rio de Janeiro, São Paulo e Recife. Pouco antes, estive em Madrid, onde cantei fado vestida de branco (foi a minha irmã que trouxe o hábito do fato comprido preto) e cantigas em espanhol. No Brasil fui para o Teatro República. Eu e a Amália fomos tratadas como rainhas. Convidaram-nos para ficar lá mais tempo, a Amália a 200 contos por mês e eu a 30. Mas nem queira saber as saudades que tínhamos de Portugal. E por isso recusámos. Costumo dizer que eu e a Amália somos pedras de Lisboa.
Regressou e retomou com José Casimiro. Como é a Celeste em modo apaixonado?
CR_Muito romântica. Mas nunca me apaixonei a olhar para um rapaz e para os seu físico. Era sempre uma expressão, as mãos, a maneira de falar que me cativavam. No caso do Zé Casimiro, era a graça dele. E era muito giro, toureava. Foi um grande cavaleiro de uma família com tradição nas touradas, e tinha muito sucesso com as raparigas. Gostava muito de dançar, tal como eu. Frequentávamos diariamente os chás dançantes.
Muitos ciúmes?
CR_Nunca fui ciumenta, nem eu nem os meus dois maridos. O ciúme vem do medo de perder e eu não tinha esse medo. Se bem que mais tarde…
Mais tarde, com o ator Varela Silva?
CR_Sim, afastei-me de Portugal por motivos profissionais durante meio ano e durante esse período ele começou a andar com a Simone.
O que a cativou nele, cinco anos mais novo?
CR_Ele enganou-me na idade. Conheci-o porque ele ia ouvir-me cantar. Eu tinha acabado de me separar do Zé Casimiro e o Varela dava-me conselhos. Era um confidente. E um homem muito interessante. Fascinava-me a voz. Depois começou a convidar-me para jantar e assim me enrolou durante 27 anos. Com o Varela a paixão foi mais forte. Já tinha 30 anos.
Tal como fez com José Casimiro, também se despediu de Varela Silva.
CR_Fui visitá-lo estava ele já doente mas não me passou pela cabeça que era a despedida. Uma tarde à conversa, entrecortada pelos telefonemas a amigos a dizer-lhes que eu estava com ele. Sempre me pôs nos píncaros da lua.
COM ELE [VARELA SILVA] CASOU E TEVE DUAS FILHAS. E UMA CASA DE FADOS, A VIELA. A VIDA MUDOU.
CR_ MUDOU MAS EU CANTEI ATÉ AO ÚLTIMO DIA DAS GRAVIDEZES, COM ELAS A PULAR NA MINHA BARRIGA. O PRIMEIRO PARTO FOI MUITO DIFÍCIL. JÁ TINHA 33 ANOS.
NA VIELA CONTRATA ALFREDO MARCENEIRO, UM FEITIO DIFÍCIL. COMO ERA A VOSSA RELAÇÃO?
CR_ O ALFREDO ADORAVA O VARELA. A MIM, NÃO TANTO. ERA DE FACTO UMA PESSOA MUITO DIFÍCIL, COM MUITO MAU FEITIO. DIZIA MAL DE QUASE TODA A GENTE MAS ERA MUITO ENGRAÇADO E, CLARO, CANTAVA MUITO BEM. ESTEVE NA VIELA QUATRO ANOS.
A MEMÓRIA DELE TEM SIDO BEM TRATADA?
CR_ NEM A DELE NEM A DE NENHUM. QUEM FALA DO VASCO SANTANA, UM ATOR FORMIDÁVEL, DA MIRITA CASIMIRO, DA GLÓRIA DE MATOS, DOS GRANDES NOMES DE OUTRORA?
Nem a da Amália?
CR_Também não. Por exemplo, deixarem fazer aquele filme [Amália] que é uma coisa
horrorosa.
E o público?
CR_O público adorava-a, mas também não sei até que ponto é fiel. Umas vezes gosta de dizer «coitadinho», outras vezes «filho da dúvida».
E o Estado, as instituições?
CR_Não tinham pelo que a tratar mal, mas também não fizeram nada para desmentir a acusação de que fora da PIDE.
Ela morreu com essa mágoa?
CR_No Parlamento disseram que ela nunca se tinha metido em política. Mas podiam ter ido mais longe.
Na vossa família, o 25 de Abril foi vivido com sentimentos contraditórios?
CR_Não, nós nunca nos metemos em política, nem percebíamos nada disso. Gosto mais de poesia. Se bem que a mim não me acusaram. Não tinha a mesma importância da Amália. Não arrastava as pessoas. A ela era importante tirar-lhe força.
Viu portas fechadas em 1974?
CR_Claro, por isso é que perdi o meu marido. Estive os tais seis meses sozinha no Canadá porque nem eu nem o Varela tínhamos trabalho em Portugal. Ele ficou cá com as duas filhas e foi aí que conheceu a Simone.
O lugar de Amália é no Panteão?
CR_Quando penso nela como artista sim, e é uma honra. É a única fadista no Panteão e foi a primeira mulher. Mas quando penso nela como irmã faz-me impressão aquele lugar tão frio. Preferia ver a minha irmã na terra. Vê-la de regresso ao princípio, à origem. Ao adubo. Mas, repito, como artista é uma honra.
De novo a infância: o sonho da Celeste não era cantar mas o ballet. Como é que uma menina do Fundão, sem TV, queria ser bailarina clássica?
CR_Queria e andava sempre em pontas. Era o que via nos filmes que passavam no Casino, uma sala de cinema que havia no Fundão e onde fui muitas vezes com a minha mãe. Mas acabei por nunca aprender e ainda bem – como o mais certo era não ter jeito livrei-me de uma desilusão.
Tem medo do risco?
CR_Por acaso, não. Nunca pensei que poderia ganhar muitos dos concursos em que entrei. Também nunca me interessou ganhar, nunca tive essa vontade. Mas a verdade é que eu só podia ser fadista. Não tenho habilidade para mais nada. Não sei fazer nada. Também gostava de ser pintora. Faço quadros desde os 80 anos. Comecei tarde mas já vendi uma data deles.
GV_São quadros muito bonitos. Adoro.
Do que mais gostas nos quadros da avó, Gaspar?
GV_Das paisagens e das cores.
CR_Os meus quadros dizem muito de mim. Pinto com as cores de que eu gosto, não sei desenhar, o que diz de mim é a cor. E eu estou cheia de cor por dentro.
Ficou por perguntar, há pouco: como se chama o novo disco que vai lançar agora?
CR_Já tenho os poemas. O título ainda não está definitivamente escolhido. Estamos a pensar em Vendaval de Sonhos. Porque também são os sonhos que me mantêm agarrada à vida.
Ainda e sempre com bâton vermelho?
CR_Sempre. Mesmo com uma data de pregas. Mas não me amarguram. Não são rugas, são ruas. Significam que ri muito porque, como lhe disse, nunca me deu para chorar.
BASTIDORES: FADO NA RUA
Na pequena rua empedrada do antigo Bairro da Pena, sem saída e sem carros – mais pátio do que rua – crianças brincam e vasos de sardinheiras enfeitam as soleiras das portas. As casas são térreas e dos telhados pendem vestígios de festa, decorações de Santo António que resistiram ao tempo. Uma vizinha interrompe, e fica a assistir. Moldura perfeita e raro momento, acompanhado à guitarra pelo bisneto Gaspar. «Meu nome baila no vento/ na tempestade do mar/ vai-me na voz o lamento/ que o vento anda a espalhar», canta Celeste à janela, debruçada sobre a rua e o canteiro de flores, postal da Lisboa castiça dos anos 1950. E foi esse ambiente que marcou a entrevista.
Alexandra Tavares-Teles
VÍDEO: veja Celeste Rodrigues cantar o Fado Pechincha, acompanhada à guitarra pelo bisneto, aqui: