Assobiar para o lado

Notícias Magazine

Depois de tempos particularmente difíceis, os destroços emocionais que permanecem deixam marcas profundas que se lêem nas obras que se escrevem, nas fotografias que se tiram, nos valores e ideais que se celebram.

No final da I Guerra Mundial, T. S. Eliot escrevia The Waste Land, um poema emocionalmente violento pela esterilidade e dureza das suas imagens, imprimindo o tom aos anos pós-guerra. Já a geração que viveu a II Guerra Mundial deixou-nos a foto do beijo entre um marinheiro e uma enfermeira, que comemorava o adeus às armas.

Refiro-me às guerras, porque são a maior força a impelir uma sociedade para a mudança de valores e atitudes, antes e depois de acontecerem. São o destino, o «fado» de uma nação ou de um conjunto de nações que caminha de olhos vendados pela linha de comboio sem o saber ou sem o querer saber, até que o comboio inevitavelmente chega e tudo se descarrila.

Tenho medo que a frase batida de que a história se repete seja mesmo verdade e que caminhemos, cegos, para o término de uma sociedade que valoriza a paz, a cultura e a união dos povos. Eram esses, pelo menos, os valores europeus que aprendi na escola, na arte da última metade século xx, nas viagens que fiz no início do século XXI.

Mas, entretanto, algo mudou. E o orgulho em saber-me europeia, pertencente a essa comunidade que partilha tão estimados valores, passou a vergonha e revolta ao vê-los veementemente rejeitados na política de alguns e nos gestos de tantos.

Desde quando é que se tornou aceitável fugir dos problemas, ao invés de enfrentá-los? De fingir que eles não existem ou que são a raiz dos nossos próprios problemas? A verdade é que uma Europa que maltrata quem cá chega fugido de guerras e atrocidades, que não sabe acolher, ouvir, consolar, que não quer dialogar ou pensar o problema de forma séria e, sobretudo, humana, não é a comunidade iluminada e aberta que crê ser. A imagem que tem de si torna-se agora muito diferente da realidade.

Os velhos odiozinhos entre países regressam, as fronteiras reerguem-se com arame farpado, os olhares condescendentes do norte para o sul reinstalam-se e o desprezo com que se olham os forasteiros, os não europeus, não-ocidentais, não-alinhados, anula anos e anos de uma filosofia de paz, liberdade e igualdade.

E não, não coloquemos apenas nos nossos líderes o ónus da responsabilidade. Ela é partilhada por todos os que encolhem os ombros, achando que se não é directamente connosco, então não é problema nosso. É o nosso silêncio, a nossa indiferença e até mesmo o nosso medo que nos cobrirão de vergonha, assim quea história destes tempos seja contada nas escolas daqui a muitos anos.

E tantos alunos irão, como eu o fiz enquanto lia acerca dos períodos de guerra do início do século passado, coçar a cabeça, incrédulos, pensando como foi possível que um conjunto tão vasto de gente tivesse permitido deixar morrer assim os seus preciosos valores.

Sabemos o que acontece quando o medo impera. Já o lemos nos livros e já o descrevemos nos exames do secundário. Mas teimamos em achar que tudo é diferente dessa altura e que tudo está igual ao que era há 20 anos. O que mais me assusta é que seja precisamente o contrário: que tudo é diferente de há 20 anos e que vivemos tempos conturbados que sinalizam conflitos maiores que hão-de chegar, como já anteriormente chegaram.

A importância de uma vida não é mensurável por nenhuma escala numérica, nem tem fronteiras ou hierarquias. Todas valem o mesmo e carecem do mesmo respeito. Não esqueçamos nunca as palavras de John F. Kennedy no seu discurso ao Parlamento canadiano: “A única coisa que o mal necessita para triunfar é que os homens bons não façam nada.”

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
23-8-2015