A 11 de julho de 1995 saía o número zero do Ai Ai. Uma revista alternativa de banda desenhada, feita por jovens autores então desconhecidos e que hoje compõem a mais internacional geração da ilustração portuguesa. No próximo sábado, precisamente vinte anos depois, publica-se o número um. «Somos a única revista bidecadal do mundo», diz André Carrilho, diretor da nova edição.
Havia talento, havia vontade, não havia era espaço onde publicar. É assim que Luís Lázaro resume o aparecimento, há 20 anos, do Ai Ai. «Toda a gente se queixava de que faltava um espaço para mostrar uma BD mais adulta», diz Luís Lázaro. O ilustrador tinha 24 anos e uma visão do que era preciso fazer. «Queríamos representar a nossa época com um olhar artístico alternativo, que conseguisse tirar a banda desenhada do nicho onde vivia.» Juntou-se um grupo de autores, alunos de Belas Artes que já tinham experimentado a nona arte em publicações como O Fiel Inimigo ou o LX Comics, entretanto encerradas. Esses rapazes eram as promessas do seu tempo. E os anos acabariam por confirmar-lhes o talento.
Além de Luís Lázaro, o número zero do Ai Ai teve desenhos assinados por André Carrilho, Fernando Martins, Jorge Mateus, Nuno Saraiva, João Fonte Santa, Pedro Burgos e Filipe Abranches. Nos anos seguintes todos acabariam por ganhar reconhecimento nas artes plásticas e na ilustração, dentro e fora de portas. Na redação estavam Rui Zink e JP Simões, que nesse ano começaria a trabalhar com os Pop Dell Arte, fundaria os Belle Chase Hotel e mais tarde lançar-se-ia numa carreira musical a solo. Carlos Guerreiro, nome maior do design, tratou do grafismo. «Foi incrível o talento que se juntou para criar este projeto», diz Rui Lourenço, que produziu o número zero e desafiou a equipa a repetir a dose, duas décadas depois.
Não foi preciso periodicidade para os jornais da época perceberem que algo de extraordinariamente novo tinha aparecido. O Expresso chamou-lhe «a voz da banda desenhada portuguesa» ainda em 1995. O Público disse que era «a mais audaciosa iniciativa editorial dos últimos anos». O Diário de Notícias tratou de organizar uma parceria, através do suplemento DN Jovem, para captar e difundir novos talentos da nona arte. Mas era com o falecido O Independente – onde o diretor de Arte, Jorge Silva, estava a fazer uma aposta forte na ilustração, que depois transportaria para o Público – que o Ai Ai seria encartado.
O número zero era a edição experimental, a partir daí as contas faziam-se mensalmente. A distribuição estava assegurada e a equipa tinha arranjado um parceiro para os custos. «A Sagres patrocinava a seleção nacional e nós trabalharíamos numa campanha com eles a troco do patrocínio exclusivo da revista nas primeiras edições», lembra Rui Lourenço. Quando, na noite de 11 de julho de 1995, o grupo se juntou para a festa de lançamento no Johnny Guitar, o clube onde uma década antes se tinha estabelecido o movimento rock português, a expetativa era de triunfo. «Pintámos as paredes todas de branco para expor os desenhos, na noite de lançamento aquilo cheirava a tinta que tresandava», recorda Jorge Mateus. «Os gajos ficaram furiosos connosco.»
Foi o futebol que trocou as voltas ao Ai Ai. «É uma ironia», lembra André Carrilho, que hoje assina regularmente cartoons no Diário de Notícias e faz ilustração para algumas das principais publicações do mundo, do The New York Times à Vanity Fair, do britânico Independent à revista New Yorker. «Nesses anos víamos a seleção jogar e acreditávamos que em Portugal nasciam coisas que tinham um nível de qualidade mundial. Isso ajudava- nos a sacudir os complexos, a acreditar que daqui poderíamos chegar a toda a parte.» Em 1995 Portugal jogava o apuramento para o Euro’96 em Inglaterra, para o qual haveria de se apurar. Mas, depois da saída do número zero da revista, a seleção tremeu. Primeiro foi o empate em casa a uma bola com a Irlanda do Norte, depois o mesmo resultado, mas fora, com a Áustria. «A Sagres, que estava preparada para lançar a campanha e financiar-nos, roeu a corda», lembra Rui Lourenço. Os planos para editar uma publicação mensal, com tiragem de 90 mil exemplares, esfumaram-se na falta de pontaria da equipa de Figo e Rui Costa.
Passaram 20 anos e no próximo sábado, novamente o dia 11 de julho, o Ai Ai volta a respirar. Um encontro entre Rui Lourenço, Luís Lázaro e André Carrilho foi o ponto de partida. «Pensámos fazer uma exposição com o trabalho destes autores todos para celebrarmos a efeméride», conta Rui. «Mas depois as coisas começaram a crescer.» Lourenço, que no final do ano passado tinha aberto a galeria PasseVite no bairro lisboeta dos Anjos, tinha o espaço certo para matar saudades daqueles desenhos. E então Carrilho lançou um repto: «E se juntássemos esta malta toda para lançar o número um?»
Há semanas que uma boa parte dos autores que há vinte anos fizeram o Ai Ai estão a reinventar a revista. João Fonte Santa, que enveredou por uma carreira nas artes plásticas, está contente com a possibilidade de voltar a fazer banda desenhada: «Nunca perdes o gosto, o que se tornou escasso são as oportunidades, as desculpas para o fazer.»
João Paulo Cotrim, editor e um dos maiores impulsionadores da nona arte portuguesa, diz que não há paralelo entre os tempos de edição dos números zero e um da revista. «Nos anos 90 estava tudo a explodir. A Bedeteca haveria de nascer no ano seguinte, seriam feitas várias edições independentes e o Ai Ai foi o anúncio de um período extraordinariamente rico da BD nacional. Era visualmente muito forte, tinha temas urbanos, malcomportados, muito underground», que ajudavam a cimentar uma ideia de culto.
Hoje as tiragens são baixas, várias editoras desapareceram, muito do apoio que havia para esta forma de arte esvaiu-se em tiras. Por isso é que fazer o número um do Ai Ai é importante, defende o diretor do número um, André Carrilho. «A idade torna-nos virtuosos no que fazemos, mas para conseguirmos não perder o encantamento temos de saber voltar aos sítios da nossa paixão criativa.» Ele, que tinha 20 anos no número zero e foi escolhido pelos mais velhos como aposta para aquelas páginas, decidiu fazer agora o mesmo e convidar um novo autor, Bruno Santos, que assina Lord Mantraste e tem 27 anos. «Somos a única revista bidecadal do mundo, saímos de vinte em vinte anos», diz Carrilho. «Em 2035 cá estaremos outra vez.»
A exposição Ai Ai – Número Um está patente ao público na galeria PasseVite (Rua Maria da Fonte, 54-A), em Lisboa, de 11 a 30 de julho.