A frase que Tomasi di Lampedusa põe na boca do príncipe de Salina (em O Leopardo) não é bem a que geralmente é citada, mas é o engano que me dá jeito aqui: «É preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma.» E tomando por bom esse erro, venho dizer que nem sempre… Houve num prédio lisboeta no Arco do Cego, já demolido, um lugar histórico: a Casa dos Estudantes do Império (CEI). Fundada pelo regime salazarista em 1943 e encerrada pelos mesmos em 1965. Nos finais da II Guerra Mundial, o benjamim do ditador, Marcelo Caetano, pensava que mudaria alguma coisa, juntando os estudantes das diversas colónias, para que toda a ideia imperial ficasse na mesma.
Jovens vindos de Goa e Moçambique, de Cabo Verde e Angola juntavam-se na mesma casa. A ideia era: não demonstra isto que do Minho a Timor remávamos na mesma História? Ó se as coisas dos homens fossem tão lineares… Peguemos num exemplo de um homem suave, Geraldo Bessa-Victor, negro luandense, advogado e jornalista – não, ele nunca virá ser guerrilheiro e, já depois da independência angolana virá a morrer a Lisboa, em 1985. Mas, no início dos anos 50, ele lia entre os seus amigos da casa comum um poema seu: «E o menino negro não entrou na roda/ “Venha cá, pretinho, venha cá brincar”/ Disse um dos meninos com seu ar feliz./ A mamã, zelosa, logo fez reparo/ O menino branco já não quis, não quis». Bessa-Victor lia, entrado na roda dos seus amigos, na casa do Arco do Cego, negros, brancos, goeses e mestiços. Uma década depois, um desses amigos, Luís Cília, branco nascido em Nova Lisboa, iria musicar o poema no exílio, em Paris.
A CEI tinha um jornalinho, Mensagem. Poemas, muitos, porque era uma mania do Império. Mas, por vezes, os textos fugiam para o substantivo. Um tal Amílcar Cabral, mestiço guineense de origem cabo-verdiana (uma metáfora viva da casa), assinava «Comentários» – textos curtos, cheios de ironia dura. Escrevia, em 1949, sobre as preocupações dos «jornais da capital» que titulavam da bomba atómica ao bloqueio de Berlim… Porque haveriam eles de se preocupar «com assuntos de somenos», como um muro que ruiu na Praia, em Cabo Verde? Era um muro do edifício da Assistência, soterrou centenas de pessoas. Que estranho, tantos assistidos, não é? «Pelo menos esses não morrerão da seca», faz de conta que escarninha aquele que ainda escreve «Metrópole», mas deixa ver nas entrelinhas que estará de armas na mão, poucos anos depois, a combater essa indiferença. Mas já não estava, naquela casa?
Aquela casa era cadinho de inquietações. Uma jovem branca benguelense, Alda Lara, de quem só se conheceriam os poemas de paixão pela sua pátria depois da morte, em 1962, desenvolvia temas à la Simone de Beauvoir: sim, os seus companheiros, rapazes da casa, ao sabor dos amores, tinham por certo que voltariam para a terra amada, África, África, África, arrastando as namoradas portuguesas. Mas sabiam eles o dilema de uma mulher? Ela sabia a resposta, iria morrer em Cambambe. Em 1959, os hoquistas de Lourenço Marques, Adrião, Velasco e Bouçós, os melhores do mundo, vão à CEI agradecer àquele grupo de moçambicanos, goeses, angolanos, que só conheciam de ouvir gritar por eles no Pavilhão de Desportos.
Um dia, em 1952, a revista Mensagem transforma-se em agência de viagem. Diz que entrou em negociações com congéneres casas francesas e consegue um mês de intercâmbio em Paris, por 700 escudos. Paris de Senghor e de Aimé Cesaire, do africanismo e das independências… Mário Pinto de Andrade, parte em 1955, Ernesto Lara Filho, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, filhos casa, partem depois. O império explodia.
Em Outubro próximo a CEI vai ser homenageada em Portugal. Não os hóspedes da casa não estavam unidos pelo que pensava o regime. Apesar deste, eles estavam unidos por uma certa ideia que aquela casa os ajudou a descobrir.
Publicado originalmente na edição de 20 de julho de 2014.