
Foi um ano terrível, o de 1955, o telejornal abria só com mortes. O meu telejornal, pelo menos. O meu pai chegou com o Diário de Luanda e eu li: «Ascari morre em Monza!» Fiquei a saber quem era Ascari, até aí só sabia quem era Juan Manuel Fangio, o campeoníssimo da Fórmula 1. Pelos vistos, Fangio (o argentino ainda não era uma condição, «à fangio», era só um homem) teria ganho tudo naquela década não fosse Alberto Ascari, campeão em 1952 e 1953. O meu pai e a minha mãe discutiram sobre as chances de Ascari continuar a torpedear os sucessos do outro não fosse o seu Ferrari ter batido, nos treinos, naquela curva em Monza. Quero dizer-vos que a minha casa era especializada em automobilismo, o meu pai chamava-se Álvaro Lopes, o mesmo nome do então maior corredor da cidade. Eu já me tinha apercebido do respeito e da admiração dos polícias quando mandavam parar a carrinha e, ao ler a carta de condução, davam-se conta de ter ali «o» Álvaro Lopes.
No mês seguinte, novo telejornal terrível. Dizia O Cómercio que nas 24 Horas de Le Mans um Mercedes entrara pelas bancadas e matara oitenta e muitos espectadores. Um tal Hawthorn esteve ligado ao acidente e o meu pai achava-o com futuro. Mal eu sabia que uma eternidade depois (três, quatro anos) iria cruzar-me com ele. Entretanto, por causa daquelas notícias de chofre, o meu interesse pelo automobilismo acabou. Já acontecera com a aviação. Pouco antes a cidade andava alarmada com a falta de notícias de uma avioneta que saíra do Lobito. Fomos encontrá-la abraçada a um imbondeiro, nos arredores de Luanda, e os dois tripulantes mortos. Passei a querer ser bombeiro, e abandonar a pilotagem. As tragédias automobilísticas em 1955 não me sugeriram nova vocação mas perturbariam, mais tarde, as minhas namoradas. Recusei–me sempre a abrir um capot, exceto quando tinha a certeza de que o único problema era falta de água nos limpa-vidros.
No verão de 1958, eu estava sentado num muro da Rua do Lidador, Porto, de costas para as vacas que comiam erva nos campos da Lina do leite. Passou por mim, em várias voltas e muito rápido, Stirling Moss, que andava a correr para ser o Ascari, não a chocar nas curvas mas a debicar um ou outro campeonato a Fangio. Só conseguia ser Poulidor, coisa que nem ele nem eu ainda sabíamos, porque o ciclista Poulidor só iria ser o «eterno segundo» na década seguinte. Entretanto, com quatro segundos lugares nos últimos campeonatos de Fórmula 1 e com Fangio a desistir das corridas no mês anterior, Moss estava à beira de ser, enfim, campeão mundial. No circuito da Boavista, alicerçou a hipótese: recebeu os oito pontos de vencedor. Mike Hawthorn, que ficara em segundo lugar, mordia-lhe as canelas. Mas a direção da corrida retirou a Hawthorn os seis pontos do segundo lugar e mais um pela volta mais rápida por o seu carro ter sido empurrado depois de sair de pista. Mike Hawthorn, 29 anos, tinha cabelos muito loiros e usava laço. Corria com um Ferrari, mas eu via-o mais, no dia-a-dia, a andar num Jaguar descapotável – devia ter sorrido quando soube da desqualificação e acendido o cachimbo.
Mas olhem para o pequenitates, cara de mecânico e já careca, que foi discutir com a direção da corrida. Era Moss, que a convenceu a retirar a desqualificação e a devolver os sete pontos ao seu adversário Mike Hawthorn. No mês seguinte, na última corrida, Hawthorn tornou-se o primeiro inglês campeão mundial de Fórmula 1, com um ponto a mais do que o seu compatriota Stirling Moss, outra vez segundo. Hawthorn morreu num acidente de estrada no ano seguinte e Moss anda aí, aos 85 anos, e sem nunca ter sido campeão.
NaquelA tarde, no muro da Rua do Lidador, vi passar também por mim Jack Brabham, outra lenda, que viria a ser tricampeão mundial. Peço desculpa, passou por mim sem o reconhecer e abuso, porque morreu esta semana, por me servir dele para evocar outros. Mas a causa é boa.
PUBLICADO ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO DE 25 DE MAIO DE 2014