Quem dera que o meu amor tenha sido raptado!

Notícias Magazine

Estou a escrever ainda mergulhado naquele que é o grande mistério. Se calhar, o leitor já sabe tudo sobre o avião malaio, mas como posso deixar de falar dele? Com aquele jeito conciso que a lín­gua inglesa permite, houve um momento inicial em que parecia que a namorada de um dos passageiros tinha dito tudo. Fizeram-lhe a pergunta, como quem se dirige aos familiares de gente (como os nossos pescadores) que não morre na cama: o que mais lhe dói é não saber o que aconteceu? A pergunta é delicada mas, na verdade, es­conde esta dureza: diga-me, o que mais lhe dói é não saber onde o corpo pode estar? Ao que ela disse, olhando a câmara: «Uma respos­ta é o fim, não é?» Não, ela preferia não ter resposta. Por vezes, ter uma resposta é o pior que pode acontecer.

Há mais de um quarto de século, em 1986, vi pela te­levisão a nave Challenger descolar – iam sete tripulantes a bordo e a vedeta era uma civil, a professora Christa McAuliffe, que ia para o espaço dar uma aula para todos os liceus da América. A câmara fo­cava a tribuna de onde, no Centro Espacial Kennedy, autoridades e familiares – entre eles, os pais de Christa – viam o foguete no céu da Florida, que está sempre azul. Num quadradinho do televisor, via-se a subida, que parecia lenta, segura, gloriosa. De repente, a na­ve virou foguete doido de Carnaval, rabiou em curvas, deixou um rasto de fumo e explodiu. E tudo se passou a quilómetros de altitu­de, aos olhos do mundo e, sobretudo, da tribuna. Os pais de Christa souberam logo o que acontecera. A resposta só podia ser uma.

Um avião, hoje (quer dizer, a décadas de quando aquela céle­bre neozelandesa entre as duas guerras mundiais e Antoine de Saint-Exupéry voavam e desapareciam), um grande avião que ho­je se perde é, 24 horas depois sem notícias, uma tragédia. Os fami­liares bem podem ficar com a certeza dos pais de Christa, e com a vantagem de não terem assistido ao horror. E, no entanto, aquela in­glesa agarrava-se à dúvida. Enquanto não há morte certificada, há esperança… Ela preferia ficar sem saber. Nós, de fora, podíamos ser homens de pouca fé: um Boeing 777 que desapareceu sobre o mar, sem notícias dias depois, é um Boeing morto, ele e os seus passagei­ros. Para nós, não havia necessidade de resposta para sabermos o fim. Para ela, uma resposta traria o fim.

Pois acabamos de viver dias, mais de uma semana!, em que surgiram muitas respostas e algumas sugerindo que talvez não tenha havido fim. Que o avião mudou de rota. Que voou horas e horas depois de ser dado como desaparecido. Que voou baixinho, o que quer dizer deliberadamente por parte de quem o pilotava. Que poderia ter rumado para o Cazaquistão. Que… Que… Tudo insólito, frágil, seja. Mas qualquer náufrago (falo dos familiares e amigos) agarra-se ao que surge, mesmo doido. O que terá dito a mulher que não queria resposta, nenhuma resposta? Agarrou-se, seguramente se agarrou, a esta prece: «Oh, quem dera que o meu amor tenha sido raptado!» Oh, quem dera que ele esteja num aeroporto clandestino…

Há histórias assim. Esta começou pelas dúvidas sobre aqueles dois passageiros com passaportes falsos. Nessa altura, essas dúvidas ajudaram a cimentar a hipótese má, a de ter sido terrorismo, logo explosão. Depois, quando se abandonou essa hi­pótese (os jovens iranianos de passaportes falsos podiam ser tão-só candidatos a imigrantes na Europa), a falha da explicação ajudou a sabotar todas as certezas, nomeadamente a lei que tí­nhamos todos na cabeça: avião desaparecido tanto tempo não tem sobreviventes. Daí, saltámos até à iconoclasta hipótese, em que embarcámos, de poder haver um fim feliz…

O leitor já pode saber, eu ainda não sei. Então, leio sinais. Reparou? O avião não é luxemburguês. Um Boeing luxembur­guês desaparecido não pode senão ter um destino vulgar. Mas o avião é malaio. Como Sandokan. Vão ver as aventuras que nos vai trazer. Quem dera.