«Uma mulher elegantemente calçada nunca será uma mulher feia», dizia Coco Chanel há várias décadas. A razão é bastante válida para explicar o amor por sapatos, mas não é claramente a única. O que leva as mulheres a ter esta relação tão particular com aquilo a que algumas chamam «verdadeiras obras de arte»? A ciência dá algumas pistas.
Os compradores acreditam que sapatos são uma compra utilitária – algo que pode ser utilizado várias vezes durante uma semana. Portanto, o prazer que resulta da compra mantém-se durante mais tempo.» As palavras são de Martin Lindstrom, em entrevista à revista Cosmopolitan. O consultor de marketing de empresas como a McDonald’s, a Nestlé, a Microsoft ou a Walt Disney Company refere-se assim à sensação de bem-estar que percorre o ser humano quando tem descargas de dopamina, o neurotransmissor associado a funções cerebrais como o prazer ou a recompensa. As descargas podem ocorrer em vários momentos, e por vários estímulos diferentes – e as compras são um deles. Nomeadamente de sapatos. «Em algumas pessoas pode ser tão forte como satisfazer um vício.» Claro que as compras de outros objetos também podem ter este efeito, mas aí – sobretudo quando se gasta muito dinheiro – isso é rapidamente substituído por outra sensação poderosa: a culpa. No caso dos sapatos de mulher, é bem possível que o cérebro não seja estimulado pelo valor da peça, mas sim pela possibilidade de ter mais um par no armário. Seja caro ou barato.
A ciência vai ainda mais longe na explicação desta fixação com calçado. «A compra de sapatos estimula o córtex pré-frontal, que controla o comportamento de colecionar objetos», diz, no mesmo artigo da Cosmopolitan, a norte-americana Suzanne Ferriss, investigadora de pós-doutoramento em Moda, Humanidades e Literatura na Nova Southeastern University, na Florida. O que significa, grosso modo, que cada par de sapatos pode provocar um minipico de adrenalina semelhante à de um colecionador de selos quando encontra um exemplar raro. Isto porque os sapatos são considerados, por muitas mulheres, como objetos de coleção, «mesmo que tenham noção clara de que precisam deles ou não».
Segundo uma outra reportagem, publicada em 2005 por Steven Aderson, da Universidade do Illinois, na revista Brain, especializada de neurociências, «há estudos que revelam que o ato de adquirir e manter objetos, mesmo quando eles não são essenciais à sobrevivência, tem estado presente no comportamento humano desde os primórdios das sociedades humanas». Há cerca de setenta espécies da natureza que colecionam objetos. A diferença, explica Aderson, é que «os humanos colecionam objetos além dos somente necessários à sobrevivência. As pessoas colecionam arte, selos ou, na verdade, qualquer coisa. Os humanos têm uma estrutura [cerebral] superior que modula o ato de colecionar», revelou o autor ao Science Daily.
Em entrevista recente à revista espanhola Fuera de Serie, suplemento do jornal El Mundo, o famoso designer de sapatos Christian Louboutin afirmou que «quando uma mulher entra numa sapataria e compra um par de sapatos, a sua excitação é tal que já cheguei a ouvir mulheres dizerem que “é como se tivesse comprado umas pernas novas”. Porque alguns sapatos não são simplesmente sapatos. Eles pressupõem quase uma mudança de atitude.»
Moral da história? Compramos sapatos porque isso nos faz sentir bem, porque acreditamos que estamos a colecionar alguma coisa, e o nosso cérebro ainda nos confirma que a experiência é maravilhosa. Quer melhor desculpa para justificar as coleções que se acumulam no seu armário?
Isabel Biu é cantora lírica no Teatro São Carlos, em Lisboa. No seu armário vivem «neste momento, quase cem pares usáveis. De salto, rasos, sandálias, botas, botins.» Diz que não se recorda exatamente quando começou a sentir paixão por sapatos, mas acredita ter sido «por volta dos 10 ou 11 anos». E quando é que percebeu que era crónico? «Quando, ao começar a receber o meu dinheiro, a primeira coisa em que pensava era em comprar sapatos.»
Célia Ventura também sente as descargas de adrenalina do córtex pré-frontal quando lhe mostram sapatos. A paixão por estes objetos «evoluiu ao longo dos tempos, com o meu crescimento como mulher, e agravou-se quando comecei a trabalhar, a ter independência económica, que me permitiu comprar, comprar, comprar! Cheguei a ponto de, num caso de indecisão numa determinada compra, trazer os dois ou três pares da dúvida.» O marido começou a queixar-se da falta de espaço no armário e a arquiteta garante que agora é uma «compradora mais consciente». No entanto, dentro do seu armário ainda há cerca de oitenta pares de sapatos. «Não gosto de os contar», diz.
Mas como é que se gerem as solas e as capas dos sapatos quando se vive em cidades onde a calçada portuguesa adora dificultar a vida das mulheres? É possível andar sempre de saltos altos? «Muitas mulheres até levam os sapatos de salto alto na carteira para calçar apenas antes de entrar no escritório», justamente por causa desse problema, diz Célia Ventura. Mas Filipa Fonseca Silva não gosta do método. «É uma questão de prática e alguns segredos», diz a criativa publicitária. «Por exemplo: na calçada deve andar-se na ponta dos pés, para não prender o salto nas pedras.» Filipa só anda de saltos altos, o que encara como «fazendo parte da minha personalidade. Quem me conhece sabe que os sapatos de salto alto são uma característica minha, como o ser baixinha ou usar o cabelo curto. Talvez desempenhem o mesmo papel que as tatuagens, para quem as faz.» Isabel concorda com Filipa quanto às técnicas para enfrentar a calçada portuguesa. «É preciso calma, paciência e alguma técnica. Mas com treino consegue-se.» A cantora é uma apaixonada por saltos altos «porque de maneira geral me tornam mais elegante. Uma mulher de salto alto – que saiba andar de salto alto, claro! – transmite segurança, elegância.»
Para falar de saltos, porém, precisamos de fazer uma pequena viagem no tempo e voltar à corte de Luís XIV, o Rei Sol. Consta que o monarca que idealizou o Palácio de Versalhes terá sido o primeiro a pedir concretamente sapatos com saltos altos, de forma a tentar disfarçar a sua baixa estatura – não se sabe ao certo, no entanto, de quantos centímetros seriam. Em pleno século XVII, a corte francesa adotou rapidamente a moda dos saltos. Durante os anos seguintes, estes eram tão mais altos quanto a classe social da pessoa que os usava. Fosse homem ou mulher. No caso delas, porém, desde cedo se notou uma alteração importante: a postura mudava com sapatos de salto. O peito sai, o rabo fica mais empinado, as costas ficam mais direitas, a figura mais elegante. A postura é inevitavelmente mais sexual.
No década de 1940 surgiram os famosos stiletto – os salto agulha – que vários criadores reclamam como sendo uma invenção sua. A história conta que estes saltos surgem da necessidade de devolver às mulheres alguma feminilidade perdida durante a Segunda Guerra Mundial, quando tiveram de substituir os homens nas fábricas. E, no final da década seguinte, foi criada aquela que seria uma das grandes responsáveis pela popularização dos saltos altos, desde tenra idade, sobretudo: a Barbie. O documentário God Save My Shoes, realizado em 2011 por Julie Benasra, realça bem a importância da boneca cujos pés eram desenhados para utilizar apenas saltos altos.
A partir de então, os designers começam a criar autênticas obras de arte que encantam mulheres de todo o mundo e que contribuem inexoravelmente para a paixão por este objeto. «Desperta em nós um certo sentimento de luxúria. Eu não preciso de 600 pares de sapatos, mas eu quero ter 600 pares de sapatos», conta uma das mulheres ouvidas no documentário produzido para a Semana da Moda de Paris de 2011. E voltamos à necessidade de colecionar: «Só mais uma coisa, só mais um par de sapatos, só mais uma hipótese de sentir alguma coisa.»
Questionada sobre se os saltos fazem a mulher sentir-se mais poderosa, a curadora sénior do Bata Shoe Museum, um dos maiores museus dedicados ao calçado, em Toronto, no Canadá, Elizabeth Semmelhack é perentória: «Tem mais que ver com poder sexual [pela postura a que obrigam] do que com poder em si. Se tivesse que ver com poder, no verdadeiro sentido da palavra, os homens utilizariam saltos altos», diz em God Save My Shoes.
«Gosto de ver mulheres de saltos pela sensualidade que isso transmite e porque as torna mais altas, com pernas mais esculturais», diz Rodolfo Leal. O veterinário admite a preferência por mulheres que usam saltos altos, porque «ficam bem mais sexy». «Casei-me com uma mulher pequenina viciada em saltos altos.» O que o faz gostar ainda mais deste tipo de calçado.
A relação dos homens com os saltos altos pode assumir vários contornos. Este é um deles. Outro é o protagonizado por Yanis Marshall, Arnaud e Mehdi, o trio de bailarinos que este ano deixou o júri (e o público, que o levou à final) em êxtase no programa Britain’s Got Talent, ao dançarem um tema das Spice Girls em cima de uns consideráveis saltos altos. Justificaram a escolha com o facto de estrelas como Madonna e Beyoncé terem tanto sucesso…
Outra figura masculina incontornável quando se fala de saltos é Namie Wihby, o brasileiro que, desde a década de 1980, dá aulas de passerelle em São Paulo a modelos, celebridades e a todas as mulheres que queiram andar em cima de saltos com elegância. O paranense envergonha muitas mulheres ao andar perfeitamente em cima de saltos de altura inimaginável.
«Os saltos transformam a linguagem corporal, dão-me uma atitude mais confiante, elevam-me física e emocionalmente», diz Célia Ventura. Mas a arquiteta não usa saltos todos os dias, em parte devido ao piso da cidade, não só devido ao risco de queda mas também perante a possibilidade de ter de levar os sapatos ao sapateiro. O que também fez que gastasse menos dinheiro em cada par. Os favoritos – alguns dos mais caros, também – ficam assim para outras ocasiões.
A questão financeira é importante quando falamos da quantidade de pares, mas também da qualidade de alguns. Ou, se calhar, talvez devamos falar da originalidade. Ou, para sermos mais corretos ainda, do nome na etiqueta. Carrie Bradshaw, a protagonista da série O Sexo e a Cidade, talvez seja corresponsável por esse desejo de ter sapatos de designers como Manolo Blahnik, Christian Louboutin ou Salvatore Ferragamo. Há quem considere os sapatos destas marcas autênticas obras de arte, mas mesmo os próprios criadores admitem que há modelos particularmente desconfortáveis, de tão altos – e há mulheres que perdem a cabeça somente para os ter no seu armário.
Quem gosta muito de sapatos, no entanto, não gosta apenas de modelos caros. A vontade de os ter consegue ser superior à loucura de gastar dinheiro que, muitas vezes, não se tem. E se tivermos em conta que um par assinado por Manolo Blahnik custa, no mínimo, 500 euros, é fácil de pensar em destino mais útil para quantias dessas.
Investimento, necessidade de colecionar, paixão, obsessão, luxúria ou necessidade: são várias as palavras usadas para tentar explicar este fascínio, independentemente da cor, do material ou da marca. «Nunca fiz nenhum grande investimento num só par», diz a cantora Isabel Biu. «Gosto de sapatos de qualidade, de pele, com um bonito design e por isso aproveito as promoções da sapataria onde habitualmente vou. Aí já aconteceu comprar cinco pares de uma vez! Infelizmente não tenho nenhum par de estilistas famosos, com muita pena minha pois gostava de verificar se, além do design, são mais confortáveis do que aqueles que uso.» Uma dúvida que deve ser partilhada por muitas mulheres. E homens.
NEUROMARKETING
Tem havido avanços significativos na capacidade de estudar a reação das pessoas a produtos comerciais. O neuromarketing é uma variante mais tecnológica do clássico estudo de mercado, já utilizada por investigadores portugueses na Fundação Champalimaud e na Universidade de Coimbra, e permite avaliar a resposta cognitiva, afetiva e até sensorial do consumidor a determinados produtos. Usando ressonância magnética funcional, consegue-se ter a indicação de se a reação a um produto é negativa, positiva ou neutra, consoante a área cerebral ativada perante determinado produto.
OS SAPATOS MAIS CAROS DO MUNDO
Os sapatos mais caros do mundo são uma recriação dos famosos sapatos vermelhos de Dorothy, do filme O Feiticeiro de Oz. O joalheiro Ronald Winston utilizou rubis e diamantes neste par de sapatos desenhado para celebrar os 50 anos da longa-metragem. Avaliados em três milhões de dólares (cerca de 2,4 milhões de euros), foram apresentados na Casa Harry Winston, em Nova Iorque, em 1989.