Quase, como tudo na vida

Notícias Magazine

Carlos Heitor Cony nem é um dos meus cronistas brasileiros preferidos. Na coletânea de Joaquim Ferreira dos Santos, As Cem Melhores Crónicas Brasileiras, ele é escolhido três vezes. Ser autor de três por cento das melhores crónicas no país de Rubem Braga, Nelson Rodrigues e Luis Fernando Verissimo é como ser uma das dez mais belas croatas que passam numa rua concorrida de Zagreb – é preciso ser muito, muito bom. Carlos Heitor Cony é muito bom, mas conheço melhor. Mas, há dias, peguei num romance dele, Quase Memória, e fiquei encantado.

Desde logo, gosto dos títulos que me contam tudo sem mesmo precisar de folhear. Para continuar nos exemplos brasileiros, eu soube logo que haveria de me apaixonar por A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água, de Jorge Amado. Logo na capa vi que o herói iria morrer duas vezes e que ele era um personagem colorido, engasgado por ter tomado por cachaça o que era um gole de água. Com o romance de Cony percebi de imediato que aquilo era ficção a morder em recordações autênticas e versa-vice. Títulos assim poupam-me perder tempo com badanas.

Num esforço de sinceridade, confirmando a memória, o autor Carlos Heitor Cony – para os mais distraídos (evidentemente, portugueses, os brasileiros conhecem-no bem): ele existe mesmo, vai a caminho dos 88 anos, é jornalista célebre e membro da Academia Brasileira de Letras –, o autor, dizia eu, Carlos Heitor Cony chama ao narrador do seu romance Carlos Heitor Cony. E ao personagem principal chama Ernesto Cony Filho, que é o nome real do seu pai. O Cony Filho, pai, também foi jornalista, não tão célebre como o Cony, filho, o que deu jeito para contar três quartos de século do jornalismo do Rio de Janeiro. Isso quanto à memória. Já a ficção denuncia-se docemente pelo fantástico facto do pai, morto dez anos antes (1985) do início do romance, comunicar-se com o filho através de um embrulho que, pelo cheiro do papel e a perfeição do nó da guita que atava o pacote, só podia ser dele.

O embrulho nunca será aberto nem na última página, a sua existência só serve para invocar a quase memória com que Carlos Heitor Cony reconstrói o amor pelo pai. Numa entrevista recente – feita no ano passado, quando integrou a delegação brasileira que foi à Feira do Livro de Frankfurt – Cony disse que Quase Memória é uma crítica afetiva ao seu pai: «Ele é um exemplo de homem comum, um homem até ridículo, um homem que tinha vontade de ser alguma coisa. O lema dele era: “Amanhã farei grandes coisas”. Não fez. Morreu aos 91 anos tentando.»

O cronista Carlos Heitor Cony transportou para o seu romance o precioso vício das crónicas que foram o seu ganha pão nos jornais. O que ele publicava nas páginas de tinta que sujam as mãos bebia na origem da palavra latina, chronica, registo cronológico de eventos. As crónicas de Cony, admiravelmente bem escritas, não eram só exercícios de estilo. Contavam coisas (que é do que vivem os jornais). Pegando nos exemplos das três escolhidas para a citada coletânea, na primeira, ele fala de Mila, a gata que viveu com ele 13 anos e à qual dedica («para Mila, a mais do que amada») o Quase Memória. A segunda, Receita de Amante Ideal, é isso mesmo, uma receita prática. E a terceira, intitulada Da Arte de Falar Mal, que é uma repetição do nome da sua coluna de jornal durante a ditadura militar brasileira (boa desculpa para quando era preso: como podia ele deixar de fazer críticas numa coluna com o nome assim ?), era crónica para levar os leitores a passear, junto a vários intelectuais brasileiros, pelo prazer de dizer mal de todo o mundo. Nas crónicas de Cony saltam nomes e vida.

Ter obrigado o romance, a ficção, a invenção do seu Quase Memória a inspirar-se em gente que quase viveu como foi romanceada, é uma homenagem comovente a um género, o jornalismo, que muitos consideram estar acabado. E não está.

[02-03-2014]