No domingo passado, há precisamente uma semana, dei uma queda valente na rua, à porta de casa. Ao descer um passeio, pousei um pé desastradamente num buraco do alcatrão, torci-o e caí com o peso todo sobre o tornozelo. Pior: levava a minha filha ao colo e, na tentativa de não cair sobre ela, torci o corpo no sentido contrário e enfaixei-me contra o para-choques de um carro estacionado. Resultado: pé direito torcido, joelho esquerdo esfolado. E umas calças rasgadas. A criança ficou bem, aterrou de pé (tem 19 meses) e a generosidade de um vizinho que passava e me ajudou, segurando-a, acabou por tornar aquilo menos aflitivo para mim. E assustador para ela. Apesar do grito que dei e da vontade de vomitar que tive nos minutos seguintes (tal era a dor), a coisa podia ter corrido pior. Mais tarde, já no hospital, o veredito de entorse, acompanhado da recomendação de passar uma semana em casa e andar de canadianas, sem necessidade de gesso, confirmava apenas o principal ferimento: o orgulho.
É que, caramba, aquilo foi um disparate de uma queda. Ao olhar para a enormidade do buraco onde me enfiei – à vontade, à vontade, era coisa para ter uns sete centímetros, pelo menos – dei por mim a lamentar não apenas a minha sorte, mas também a falta de espetacularidade do acidente. Ninguém se magoa assim. Aquilo não foi nada épico.
É um pouco assim, também, com as relações. Sobretudo ao início. Quando queremos que tudo seja perfeito. Épico – até as quedas, para termos a miúda depois a tratar de nós. Sem grande fogo-de-artifício, para não parecer muito artificial, mas perfeito. No timing certo. Com os gestos certos. Na escolha do restaurante. Na escolha do vinho. Na escolha da música. Que até pode não ser a que a outra pessoa mais gosta, mas se a conseguirmos convencer de que aquela é perfeita para nós (e se não for um tiro completamente ao lado para ela), achamos sempre que vamos marcar pontos com isso. Porque, no fundo, é disso que se trata: marcar pontos. Tantos quanto possível, para entrarmos na cabeça do outro tanto quanto o outro já povoa a nossa.
Queremos que tudo saia perfeito. Marcante. Que seja digno de um filme. Melhor ainda: digno de um excerto de uma cena de um filme. Daqueles que estão no YouTube e gostamos de partilhar nos nossos perfis de Facebook.
E o mesmo se passa com as palavras. Queremos que aquelas palavras sejam AS palavras. De preferência as últimas de um e-mail. De uma mensagem. Ou até de uma carta (ainda há quem escreva cartas, sabem?) ou postal-ilustrado. As últimas palavras, que ficam a martelar na cabeça, no coração e no estômago do outro (onde vivem as tais borboletas que toda a gente sente naqueles primeiros tempos).
Até que, um dia, alguém diz uma coisa que não devia. Ou faz uma coisa errada aos olhos do outro. Ou, basicamente, mete os pés pelas mãos num momento em que gostaria de ter tudo controlado. E aí passamos rapidamente para o patamar seguinte. Aquele nível em que sentimos obrigação de pedir desculpa porque não estivemos como gostaríamos de ter estado. Não encontrámos, na hora, as palavras certas para dizer.
E esse é capaz de ser um dos momentos–chave no início de uma relação. Quando podemos passar a ser só nós. Quando aparecemos de surpresa e ela não tem o cabelo lavado e fica chateada porque a vemos naquele estado. Quando combinamos alguma coisa de improviso e não dá tempo para ir a casa tirar aquelas calças de fato de treino com que fomos passear o cão à rua. Quando, aos olhos de quem queremos ser sempre perfeitos, revelamos ser apenas humanos.
Quanto mais depressa lá chegarmos, melhor. Nem que seja aos trambolhões pela rua.