
Ana Garcia Martins começou a escrever por piada. Dez anos depois, a piada paga-lhe as contas. A autora de um dos blogues mais lidos e lucrativos do país conta como se faz. Não há truques, nem milagres. Dá trabalho. E também pode dar chatices.
Os posts de Ana Garcia Martins, mais conhecida por «A Pipoca Mais Doce» (apipocamaisdoce.sapo.pt), não têm hora nem lugar para nascer. Em casa, no portátil, no escritório que partilha com o marido, também blogger – «O Arrumadinho» –, na sala, no café. De manhã, à noite. Ana não tem dois dias iguais desde que ganha a vida como blogger. B-L-O-G-G-E-R. Uma palavra já reconhecida pelos dicionários, mas que ainda resiste a escrever no espacinho da profissão quando tem de preencher formulários. «Não gosto. É esquisito. Acho que as pessoas não percebem. Por isso, como tenho uma loja, digo “empresária”, o que também é estranho porque dá ideia que se não faz nada. Mas é preferível a blogger.» Até 2012 era mais simples. «Dizia “jornalista”.»
Quando A Pipoca Mais Doce nasceu, Ana Garcia Martins tinha acabado o curso de Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e era uma jovem redatora d’A Capital . Um blogue pareceu-lhe uma boa forma de pôr em prática o que aprendia no curso de escrita humorística que estava a fazer com Ricardo Araújo Pereira. «Seguia o blogue da Rititi e mais um ou outro. Sempre tive diários em miúda… porque não?»
«Um, dois, três experiência… Assumo perante todos a minha dificuldade relacional com as novas tecnologias virtuais. Estas são as minhas primeiras palavrinhas neste mundo complexo que é o dos blogues!» No primeiro post, a 20 de janeiro de 2004, Ana tinha acabado de fazer 23 anos. O blogue era pura diversão. «Nunca me passou pela cabeça que um dia viveria disto.» Escrever foi a única coisa que esteve sempre nos planos. «Entrei para o jornalismo não para sacar notícias, mas porque era a profissão que me permitia estar mais perto da escrita.» Como nos jornais não podia divagar, os blogues, que começavam a surgir, foram a solução.
Nos primeiros anos, Ana não alimentava tanto o blogue. Janeiro de 2014 regista a melhor marca de sempre em número de posts: 88. Cenário bastante diferente de janeiro de 2005, quando nem um viu a luz do dia. Não, a Pipoca não nasceu com as atuais 50 mil visualizações diárias que lhe servem de cartão de visita. E que intrigam quem lhe escreve a pedir dicas para tornar os seus blogues rentáveis. «Quase todos os dias recebo e-mails a perguntar como faço para ter um blogue que dá dinheiro.» Ficam sem resposta. «As pessoas querem começar pelo fim – criam um blogue, ainda não têm leitores, mas querem logo torná-lo rentável, ir a festas, serem conhecidas e ter coisas grátis. E isso não sei como se faz. Para mim, cria-se um blogue porque se acredita que se tem alguma coisa para dizer ao mundo, seja sobre o que for. A única coisa que posso dizer é: invista no seu blogue e talvez daqui a dez anos… O meu no início também não tinha visitas.»
Não é uma estudiosa da coisa ou a mais dedicada leitora ,nem segue receitas para aumentar visitas. Comentar muito noutros? Não faz. Ter uma boa lista de links – dar e criar tráfego de visualizações? Não faz. Títulos chamativos? Bom, isso a Pipoca faz.
A escrita é, pensa, o que tem feito a diferença. «Acho que o meu tipo de escrita é um dos fatores distintivos do meu blogue. Não é necessariamente melhor, mas é meu.» E sim, é mesmo ela que escreve tudo. «Tudo o que entra sou só eu que produzo, embora tenha muita gente a perguntar se pode colaborar». Ideia que recusa, embora não se importasse de ter alguém a pesquisar para ela. «Facilitar-me-ia muito a vida. Assim como ter uma equipa de designers. E é uma coisa que não ponho de parte, dado o crescimento do blogue e a minha vontade de o tornar cada vez mais profissional». «Outros a escrever é que não», reforça, «porque há um lado pessoal muito acentuado e quando não fosse eu a escrever as pessoas iam notar.»
O Pipoca Mais Doce é pessoal – um bocadinho de moda, de Benfica, de relações – e é esse melting pot que faz os leitores voltarem, acredita Ana. O mais recente passo para o tornar mais profissional foi entregar a gestão de alguns assuntos a uma agência de comunicação: contactos com a imprensa, relação com as marcas, negociação de parcerias. «Se não for assim não tenho tempo para escrever, que é o que interessa. Quando já há negociações e valores envolvidos é diferente sermos nós ou outros a dar a cara. Daí ter uma agente. É ela que trata disso. É chato sermos nós a vendermo-nos. É mais fácil e profissional ter alguém que o faça por nós.»
Sim, porque Ana não recebe em presentes. Não revela os valores que ganha com o blogue (até porque «variam todos os meses, dependendo da publicidade angariada») mas são o suficiente para lhe pagar as contas. Trata-se de prestação de serviços a sério. «As marcas estão a despertar para o fenómeno dos blogues como forma de comunicar. É fácil definir o público-alvo, há um feedback rápido da opinião dos leitores, sabem que se for comunicado pela pessoa certa pode ter impacte. Mas, do mesmo modo, acham que, como é um blogue pessoal, mandam um bâton e está pago. No início podia ser assim, e para muitos ainda é, mas eu vivo disto e as minhas contas não se pagam com cremes nem bâtons nem perfumes. Se querem conteúdos publicitários têm de pagar.» O que não quer dizer que não faça muita coisa à borla: «Para uma ou outra marca com quem tenho uma boa relação ou para as que me interessam. E, claro, há muitos conteúdos que publico porque gosto. Não estou a ser paga pelo senhor Louboutin.»
Na relação com as marcas leva vantagem, mas agora está menos sozinha. O ano de 2013 marcou a entrada de gente famosa no universo dos blogues. É o caso da apresentadora Cristina Ferreira. «Esteticamente, é o blogue mais bonito em Portugal e o mais apelativo visualmente. Tem toda uma equipa de fotógrafos, maquilhadores, stylists», comenta, assegurando que a concorrência não a preocupa. «Era inevitável. Se conseguir continuar a fazer que o meu blogue se destaque entre tantos nomes de peso, é bom sinal, quer dizer que vive por si e pelos seus conteúdos. Responsabiliza-me mais.»
Quando o Pipoca Mais Doce já se destacava na blogosfera nacional, em finais da década passada, Ana levou-o para o Clix, empresa que começou a explorar publicidade em blogues. Em 2012, protagonizou aquela que foi a maior transferência «blogueira» até hoje, ao passar para o Sapo, que decidiu apostar nos blogues profissionais, explorando publicidade. Na mudança, o marido – O Arrumadinho – também trocou de casa. E juntos abriram o Pipoca Mais Dois, sobre bebés. «Não queria que as pessoas que não gostam assim tanto de bebés fossem bombardeadas no Pipoca», explica.
Para muitos, Ana Garcia Martins leva a vida ideal. O hobby tornou-se na profissão, a rotina não existe, tenta que um dia por semana seja só dedicado ao filho. «Tenho a sorte de poder gerir o meu tempo. Essa foi a grande mais-valia. Os meus dias são todos diferentes. Posso dedicar a manhã só a escrever e a tarde a uma apresentação». E as marcas pelam-se por ter a Pipoca nos seus eventos. Na semana em que falou connosco esteve na renovação de um restaurante no Chiado e num evento para crianças no El Corte Inglés. «Estou ligada 24 sobre 24 horas. Ou se está no Facebook ou se está a pesquisar. A vida de um blogger é isso, estar sempre atento a tudo o que possa dar um bom post».
Estava ligada no dia em que o filho nasceu e foi também assim nos seus primeiros meses. «Não tive licença de maternidade. O blogue é o meu trabalho e só eu é que o escrevo. Claro que me apeteceu desligar e durante cinco meses gozar só o bebé sem a preocupação constante de escrever sobre isto ou aquilo, mas não pude». Como fazia? «Com o apoio do Ricardo, o pai, e aproveitando quando ele estava a dormir ou à noite, para me agarrar ao computador.»
Foi difícil deixar de ser jornalista e abdicar da «segurança» de estar «nos quadros», embora o ordenado não fosse grande coisa. Mas as peças iam encaixando-se e em 2011 tornou-se trabalhadora por conta própria. «O blogue já ocupava quase mais tempo do que a minha profissão. Pensei: é agora que faz sentido apostar. Andei dois anos a tomar coragem, acho que toda a gente à minha volta acreditava mais do que eu. O marido dizia «despede-te, despede-te». À decisão de sair da Time Out, revista de que foi fundadora e onde trabalhava, também ajudou o processo movido pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas (CCPJ), por causa da publicidade a marcas, algo proibido pelo código deontológico da profissão. «Foi a gota de água para entregar a carteira [de jornalista]. Não precisava dela. Podia dedicar-me em exclusivo ao blogue sem ter sempre alguém a policiar-me. Era eu que lidava com as marcas na revista. Porque é que na revista não era publicidade e no blogue já era? Todos os dias, jornais e revistas publicitam coisas. Há uma linha ténue entre o que é publicidade e o que são conteúdos… Apareciam referências a várias marcas mas a CCPJ implicou com o facto de dizer que umas calças eram da Zara. Fui eu que as paguei, tenho a fatura, mas isso não interessa, é publicidade. Ou seja, tudo é publicidade, um restaurante onde fosse, tudo…».
Estava aberto caminho para aceitar parcerias até então proibidas. Sem contingências, códigos ou barreiras, Ana Garcia Martins lançou-se a fundo no projeto A Pipoca Mais Doce, que hoje é também marca de produtos como vernizes, cremes, joias, T-shirts, vestidos (e outros, em breve), assim como na loja Vintage Bazaar, que criou com uma sócia, no Chiado.
Estar por sua conta e risco trouxe-lhe maior responsabilidade e a criação do seu próprio código deontológico. «Apesar das muitas solicitações, só escrevo sobre aquilo de que gosto. Recuso muita coisa, mesmo que perca dinheiro. Ou porque não me revejo ou porque considero que não tem interesse editorial ou porque acho que não é interessante para os leitores. E também não quero que o meu blogue seja uma montra de produtos, quero manter o lado pessoal muito presente, porque sei que foi isso que atraiu os leitores.»
A Pipoca Mais Doce é talvez o mais amado e odiado dos blogues portugueses e entre o rol de críticas está o da exposição excessiva da vida pessoal. Ana recusa a ideia. «O que está ali é apenas uma parte da minha vida. Aquela que poderia partilhar à mesa do café, como diz o meu marido. Nada mais.»
Sarcástica e irónica no blogue, Ana é quase o oposto no contacto pessoal. Calada e reservada, tem dificuldade em entrar num sítio e dar nas vistas. «Sou divertida e irónica e não sou a típica pessoa fofinha que anda sempre aos abraços a toda a gente, mas no blogue esse meu lado sarcástico está exacerbado, sou ainda mais corrosiva do que na vida real.» Talvez por isso, embora não sejam tantos como os fãs, os detratores existam. E moam. Hate mail era uma constante há uns anos. Mantém-se, mas os comentários já não aparecem. Ana deixou de os publicar. Mantêm-se também os blogues inspirados no seu. Encara a coisa como a Vuitton com as imitações. «Quando há gente que cria um blogue só para escrever mal sobre outro, o que dizer? É divertido e ao mesmo tempo triste. E é sinal de que tenho algum relevo. Mas evito ler. Desgasta-me.»
O episódio com maior repercussão aconteceu há um ano, depois da entrega dos Óscares. Ana fez os habituais comentários sarcásticos às mais bem e mal vestidas da noite. Uma das criticadas foi uma rapariga chamada Sofia [«E pronto, não é preciso procurar mais, está escolhido o terror da noite. Esta pequena, de seu nome Sofia Alves (podia perfeitamente ser a nossa Sofia Alves, que também é uma bimbalhona do pior) teve um surto de febre e, em delírio, decidiu apresentar-se assim na passadeira vermelha. Collant opaco, saia da Pimkie, uma camisola básica da H&M e o gorro do irmão mais velho que assalta carros à noite. Estou de boca aberta»]. Acontece que a Sofia tinha cancro e a sua ida à cerimónia tinha que ver com a concretização de um sonho, pela fundação Make a Wish. Ana garante que o post foi retirado três minutos depois, assim que foi avisada. do facto. Mas a coisa não ficou por ali. Dois dias depois, o post começou a circular nas redes sociais e deu notícia de jornal. «Quem me lê e conhece sabe que seria incapaz de gozar voluntariamente com uma doente oncológica. Já perdi vários familiares, o meu pai já passou por um cancro grave.» Pediu desculpas públicas, contactou a família para se justificar, apagou comentários e não voltou ao tema. Mas ficou-lhe uma convicção: existe uma nova profissão no mundo e é a de gerador de polémicas no Facebook.
Antes do blogue-profissão tinha ainda menos filtro. Não tem dúvidas de que não escreve com a mesma liberdade de quando era «amadora». «O sucesso cria sempre umas certas “invejites”. É muito português. Estamos sempre à espera que quem está lá em cima tropece e caia. E portanto já não posso. Se calha não pensarmos como a maioria somos quase linchados em praça pública. Ter uma opinião diferente é perigosíssimo hoje», conclui.
[Publicado originalmente na edição de 16 de fevereiro de 2014]