Os estudos de mercado dizem que as revistas de fim de semana, como a Notícias Magazine, são vistas mais por mulheres. Calha bem, quem melhor do que elas para apreciar o futebol? Elas têm noção de beleza (gostam do tirar de camisola de Cristiano Ronaldo), têm olho para o pormenor (por isso estão preparadas para o milimétrico fora-de-jogo) e têm sentido de família (sabem o que é a noção de clube). Em dias tão futebolísticos, com mais uma final europeia do Benfica, nas vésperas da sagração do CR7 na Champions e à espera da aventura da seleção no Mundial, é tempo de falar da alegria das mulheres do povo.
Ficou crismada a frase «Alegria do Povo» para referir Mané Garrincha, as mais maravilhosas pernas tortas da história do futebol. Justamente, o inesquecível n.º 7 do Botafogo e da seleção brasileira, se era Alegria do Povo, foi ainda mais Alegria das Mulheres do Povo. No sentido bíblico da coisa, com muitas mulheres, a ponto de ter aparecido um sueco mulato reclamando-se de ser filho de Garrincha e da frutuosa passagem pelo Mundial da Suécia, em 1958, da seleção canarinho. Porquê canarinho?, nunca perguntam as mulheres porque sabem que a pele bronzeada combina com um vestido amarelo e, enfim, sabem que canarinho é por causa da cor da camisola da seleção brasileira. «Olha, nunca me tinha lembrado disso…», admiram-se os homens, sempre distraídos para o modo e a moda da vida.
Alegria do Povo é o nome de um documentário de 1962 feito em homenagem a Garrincha. Um dos roteiristas do filme foi o jornalista brasileiro Armando Nogueira, autor da melhor explicação de um drible de Garrincha: «Para ele, a superfície de um lenço era um latifúndio.» Que cabe num lenço? Nenhuma bota de atleta, só um pezinho 37 ou 38 de menina – a frase do jornalista é simples imagem mas mostra os cuidados de costureirinha de sô Mané. No futebol, bola passada a um ponta-direita arranca sempre pela relva fora. Com Garrincha, parava. Ele convidava o defesa para um chá e depois de lhe perguntar se queria mais um quadradinho de açúcar passava-lhe a bola entre as pernas.
Atenção, esse tipo de delicadezas era só para os façanhudos defesas, porque para as mulheres ele tinha outro tipo de alegrias. Ruy Castro, o maior biógrafo em língua portuguesa (ressuscitou as vidas de Nelson Rodrigues e Carmen Miranda), também escreveu a biografia de Manuel Francisco dos Santos, Garrincha. Chamou-lhe Estrela Solitária, título bizarro sobre alguém que viveu cercado por arquibancadas ululantes com o nome dele na boca (quando não estavam só mudos de prazer), e cercado por mulheres (muitos casos amorosos e uma equipa de onze filhas). Ruy Castro detém-se, não poucas vezes graficamente, no tamanho dos talentos escondidos de Mané Garrincha, nome de passarinho dos arredores do Rio de Janeiro, em Pau Grande (“um lugar atrasado, onde nem o trem parava”), onde o jogador nasceu, em 1933, e foi enterrado, 1983.
Fosse esta uma revista de homens, eu falaria mais sobre o garanhão que foi Mané Garrincha, mas a maioria das leitoras inclina-me para outra conversa, romântica. As duas mulheres nos extremos, primeira e terceira, foram Nair, colega de fábrica e mãe da maioria das suas filhas, e Vanderléa, da decadência e alcoolismo. No meio é uma paixão, choque de divas, o Anjo das Pernas Tortas e a sambista Elza Soares. Um dia, num palco com Jair Rodrigues (morreu há dias) e Elis Regina (morreu há muito), Elza abriria uma canção, assim: «Se acaso você chegasse/ no meu chatô e m’ encontrasse…» Por acaso encontraram-se no castelo dele, no Chile, em 1962, onde ele foi o melhor jogador de sempre numa Copa do Mundo. Ela sambista subindo, ele começando a descer do cume. Quando têm de fugir, ele, pai de tanta filha, e ela, destruidora de lar, vão para Itália. E ele dá-se conta, na segunda pátria do futebol depois do Brasil, que ele, Garrincha, era o marido de Elza Soares.
O difícil numa revista de leitoras, mesmo entendidas em futebol, é que as histórias não podem ter só médio-ala e avançado de centro.
[Publicado na edição de 18 de Maio de 2014].