Até eu próprio, o banalíssimo eu, tive um tio que passou por cima de um jacaré no rio Bengo. Na verdade, nas margens, onde acabava a picada de terra para os camiões entrarem na jangada e retomarem a estrada do outro lado. Não foi por maldade, foi por lusco-fusco, que o Bedford subiu pelo que julgava ser um toro de árvore. O meu tio Afonso só deu pelo engano quando levou com uma pancada na porta. Acelerou, felizmente a jangada já o esperava, e foi sobre o rio que viu o monstro atropelado a deixar-se mergulhar no Bengo. Na porta da camioneta ficou a marca da vergastada com que o jacaré reagiu à impertinência. A história ficou-se pelo nosso bairro de São Paulo, Luanda, apesar de o meu tio aumentar de uma braçada o tamanho do jacaré de cada vez que a contava.
Anos mais tarde, não tantos que já me tivessem tirado os calções curtos, eu voltei ao bairro depois da breve estada em Portugal em que os meus pais tentaram dar-me uma falhada educação europeia. Na tarde seguinte reatei o costumeiro jogo de futebol, tremuno, dizíamos, numa palavra que acabou. Eu ia com ganas dele – nunca regressei a Luanda sem inspirar fundo para encher o peito de Jerusalém –, mas os outros não foram na curva. O jogo podia esperar. Os meus companheiros queriam o meu testemunho – talvez eu não fosse o primeiro a ter andado de avião em todo o São Paulo mas, ali no campo, era.
E contei. A descolagem, empurrado contra a cadeira, a janela a abrir-me o Tejo, «maior do que a baía», admiti a custo, as mordomias dadas, um saco de plástico vermelho e branco com as letras «TAP», a lagosta servida ao almoço, as nuvens que faziam tremer o avião quando eram atravessadas, o deserto… Contei que aterrei em Kano, na Nigéria, e homens com a cara tapada cavalgavam camelos, os primeiros da minha vida e dos meus ouvintes, e que aterrei em Leopoldville, onde se vendiam quadrinhos com palmeiras embutidas e se falava francês. «Eu não dizia?!», disse um miúdo negro do Norte, cujo principal orgulho era o pai, enfermeiro, chamar-se Ambroise.
O Silvestre coçava o pé, que era mais duro que a minha sandália, e era o menos, não digo atento, bem vi a atenção que deu aos camarões servidos no ar, mas menos impressionado. Foi quando contei que o avião tinha casa de banho e tudo, a gente desapertava o cinto que nos agarrava à cadeira e metia-se pelo corredor para ir lá atrás, foi quando eu ia contar mais mordomias, havia perfumes e pasta de dentes pequenina, que o Silvestre fez um muxoxo. Boca retorcida e estalo de língua, é quase sempre de mulher, mas mesmo num miúdo soa a desprezo: «Ias no corredor como?», lançou ele. Como quê? Andando. «Sem agarrar?», insistiu ele. Ia no corredor para ir à casa de banho, não era o que eu estava dizer?, atalhei, para falar dos perfumes. E ele, definitivo: «Mentira!»
Levantou-se para demonstrar. Quando nós, eu e ele, Silvestre, estávamos na carroçaria da carrinha do meu pai, íamos de pé, sim, mas agarrados aos ferros cromados nas traseiras da cabina. «Esse, então, agarradíssimo!», apontou para mim. E mimou–me todo aferrado e temeroso. Depois, ele descreveu os jatos da Força Aérea que por aqueles tempos, fim dos anos 1950, rasgavam os céus da nossa cidade, deixando rasto de fumo e dando estrondos – eram manobras de meter medo, mas disso não falámos naquela tarde –, e disse, silabando com as vogais abertas, à luandense: «Vé-ló-ci-dá-dé!» Pegou na bola e concluiu: «No avião ninguém anda de pé. Caía! Vais ver, nem tem corredor», e foi para o meio campo dar começo ao jogo. Eu demorei-me, sentado, fazendo de conta que apertava as sandálias.
Ainda hoje, centenas de viagens depois, quando me levanto num avião, as minhas mãos agarram-se aos encostos de cadeira de ambos os lados do corredor. Só depois de estar certo de que não menti ao Silvestre é que vou para onde tenho de ir.
[09-03-2014]