O maluquinho da aldeia e a maluquinha de Arroios

Notícias Magazine

Em todas as comunidades que conheci em pequena, sempre me lembro de haver uma figura que era apontada na rua, entre a indiferença e a cautela, entre o sorriso jocoso e o medo de que calhasse à nossa família tal má sorte. A forma como dela se fa­lava fazia que parecesse uma espécie de personagem-tipo, como se de um Joane, o Parvo, de Gil Vicente, se tratasse, saído do Auto directamente para a vida real.

O «maluquinho da aldeia» era a expressão mais co­mummente utilizada para descrever alguém que, mercê das agru­ras da vida, havia «ficado assim», ou seja, «meio tolo». Dentro da categoria «tolo» cabiam os que, por entre discursos ininteligíveis, tinham momentos esporádicos de lucidez, ou os que nunca saíam do «seu» mundo.

O que eu não percebia, porque era muito pequena e ima­tura, é que o «ser tolo» correspondia a um conjunto de transtor­nos, distúrbios ou doenças mentais (perdoem-me os especialistas a imprecisão com que utilizo os termos científicos). Desde a de­pressão até à bipolaridade, psicoses ou esquizofrenia, quando ago­ra penso naquelas pessoas à luz do que hoje sei, percebo que so­freram por viver num tempo em que a doença psiquiátrica era ta­bu e mais facilmente se atribuíam os comportamentos atípicos ao Diabo que se alojara no seu corpo do que a desequilíbrios químicos.

Hoje sabemos que os transtornos mentais são o resultado de um complexo conjunto de desequilíbrios físicos que são invo­luntários. Ser bipolar não é um acto da vontade, tal como não é um acto da vontade curar-se da bipolaridade.

Dizer-se que se tem uma doença mental ainda é um atestado de incapacidade, uma lepra social que vota todos os que delas so­frem à estigmatização, à infantilização, ao abandono. Se eu tiver febre, ninguém me dirá que não saio da cama porque não quero, mas se sofrer de depressão profunda será mais provável que se pense que a incapacidade de reagir é amuo e não sintoma.

Lemos notícias que dão conta que hoje, em Portugal, uma grande parte da população consome antidepressivos. Seria de es­perar portanto que, mediante a proliferação de distúrbios men­tais, se houvesse conseguido chegar a uma relação de maior co­nhecimento e aceitação em relação às doenças do foro psiquiátri­co. No entanto, sinto que para alguns a doença mental ainda é pertença exclusiva dos «maluquinhos da aldeia» ou «da cidade».

É sabido hoje que uma boa parte das pessoas sofrerá de al­gum transtorno mental em algum momento das suas vidas. Não podemos continuar a apontar as doenças psiquiátricas como a ex­cepção à regra da «normalidade» comunitária, como algo que acontece por má sorte ou «fraqueza de espírito».

Principalmente, não podemos culpar-nos a nós ou aos nos­sos por se sofrer de alguma doença mental. A vergonha ainda é o pior inimigo dos que lutam para conseguir debelar a doença. E o Sistema Nacional de Saúde, tão atacado por estes dias, não conse­gue oferecer alternativas nalguns campos da saúde mental, pre­cisamente pela desconsideração com que o poder político a trata, reflexo dessa percepção social estigmatizada e arquetipificada.

A saúde mental não é coisa de maluquinhos. É um requisi­to para uma vida percepcionada de forma satisfatória e plena. Quem não a tem não deve ser apontado, nem isolado nem temido. Muitos menos apontado como o «maluquinho da aldeia», ou a «maluquinha de Arroios».

Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia
Publicado originalmente na edição de 17 de agosto de 2014