Come-se em Hollywood e na Austrália. No Brasil e em Singapura. É, de facto, um embaixador de Portugal lá fora. E já está franchisado. Mas pelo Kentucky Fried Chicken. Conheça o império do pastel de nata à volta do mundo, agora que já é conhecido o vencedor deste ano do melhor pastel de nata do mundo – o da pastelaria Alcôa, em Alcobaça.
Cenário provável: é de manhã, está a ler este artigo enquanto bebe um café e come um pastel de nata na pastelaria do costume. Cenário real: à mesma hora, em Malaca, na Malásia, alguém estará a trincar um pastel de nata no Restoran de Lisbon. Ou na Comme a Lisbonne, em Paris, no chique bairro do Marais, que tem ao domingo a sua maior enchente. Daqui a umas horas, a pastelaria Bread Talk, da Catherine St, em Chinatown, Nova Iorque, abrirá as portas para os clientes das suas egg tarts – que é como os nossos pastéis de nata são conhecidos na maior parte do globo. Às vezes levam portuguese antes, revelando a sua verdadeira origem. Os pastéis de nata são nossos. E são, provavelmente, a nossa maior internacionalização.
Em Malaca, por exemplo, é assim que lhes chamam Julie e Albert, no seu Restoran de Lisbon. Julie, num inglês misturado com kristang, a língua local, crioulo dos portugueses que lá chegaram fez no ano passado quinhentos anos. «A pedido dos clientes», diz, têm pastéis de nata para a sobremesa. Julie tem a receita, deram-lha os portugueses que vivem no bairro lusófono, o Padri sa Chang. «Eu fiz a receita algumas vezes, mas é muito difícil e ocupa-me muito tempo», revela. Agora, e só quando os clientes pedem de véspera, compra as portuguese egg tarts numa padaria fora do bairro.
Há duas semanas que a internacionalização dos pastéis de nata anda na ordem do dia – depois de uma ideia avançada por Álvaro Santos Pereira na conferência Made in Portugal, organizada pelo Diário de Notícias. O ministro sugeriu o «franchising dos pastéis de nata» como um exemplo do que poderia fazer-se na economia portuguesa. A verdade é que os pastéis de nata, embora não franchisados, já são o mais internacional bolo português. Se não mesmo o mais internacional produto português. Ninguém tem muita certeza porque nunca lhes traçaram a história, mas acha-se que começaram por ser fabricados fora de Portugal nos países de expressão portuguesa. «A deslocação dá-se inicialmente para Macau, Angola, Moçambique, quando eram territórios de Portugal, expandindo-se depois a outros países através das comunidades portuguesas aí instaladas», explica José António Silva e Sousa, presidente da Confraria do Pastel de Nata, criada em 2008. Quando vivem fora do seu país, as pessoas tendem a agrupar-se em lugares certos para conviverem. «O pastel de nata, além da língua, das origens, acaba por ser um elemento de ligação entre os portugueses.»
NA ÁSIA, SEM QUEIMADO
O maior sucesso internacional do pastel de nata é a sua expansão asiática. Muito mais do que em África. A explicação é simples: com a descolonização, muitos portugueses saíram de África, entre os quais muitos pasteleiros, explica Silva e Sousa – isto apesar de, por exemplo, na Cidade do Cabo, na África do Sul, a Brodway Deli do senhor Correia os venda e a cadeia Vida&Caffe, do jovem português Rui Esteves, os tenha tornado chiques. Mas é, de facto, a oriente que os pastéis de nata conquistaram as ruas e os hábitos chineses, de forma até inexplicável. E de Macau, onde a influência portuguesa continua forte, rapidamente se expandiram para Xangai, Hong Kong, Taiwan. Em Xangai, os pastéis de nata da Lilian Cake Shop anunciam-se como «provavelmente os melhores do mundo», são feitos à maneira portuguesa, com a crosta queimada, e são considerados os melhores da cidade – e a concorrência é grande, como pode comprovar qualquer turista que ande pelas ruas mais centrais. A Loja de Comida n.º 1, na famosa Nanjing Lu, vende-os por quarenta centavos. Em Pequim, o pastel de nata é o bolo mais vendido da famosa Honey Bear. Em Hong Kong, diz-se que os melhores são os da famosa pastelaria Tai Cehong, de que o último governador inglês, Chris Patten, era fã. Esta pastelaria existe há mais de sessenta anos e tem mais de 14 sucursais, incluindo em Macau – tudo baseado no sucesso do seu pastel de nata, este feito à chinesa, sem ficar queimado por cima. Em Singapura, a confeitaria Tong Heng faz as melhores natas da cidade.
Nas ruas de Macau, as pessoas há muito que se habituaram às vitrinas cheias de pou táh (ou pu shi dan ta ou dan ta, nomes que no Oriente significam o mesmo: pastéis de nata), como se fossem montras de roupas e sapatos, à entrada dos cafés e restaurantes, com vários pastéis expostos em fila-indiana e por várias prateleiras. Algumas lojas, para chamar a atenção, ainda colocam em cima da vitrina a imagem de um gigante pastel de nata amarelo com um sorriso (tal qual o símbolo smile).
Curiosamente, e dando razão ao ministro Santos Pereira, não foi um português que os levou para as terras do Sol Nascente. Foi um inglês. Andrew Stow começou a produzir pastéis de nata na ilha macaense de Coloane, há 22 anos, depois de abandonar a carreira de farmacêutico. Nessa altura, chegavam à ilha muitos portugueses expatriados que rapidamente se tornaram clientes assíduos da Lord Stow’s Bakery.
O dono, para fidelizar a freguesia, teve a ideia de lhes oferecer um sabor que lhes fosse familiar. Pensou então no pastel de nata que havia comido anos antes nos Pastéis de Belém, em Lisboa. Mais tarde voltou a tomar-lhes o gosto quando estagiva no Hotel Hyatt, na ilha de Taipa, em Macau, onde conheceu cozinheiros portugueses que ali estavam para promover um festival de gastronomia lusa – nesse evento não faltou, claro, o famoso pastel.
Andrew não descansou enquanto não descobriu a receita, mas o orgulho inglês impediu-o de a pedir diretamente a um português. Isto aconteceu antes da era da internet – hoje há milhares de receitas a circular, inclusive do chef estrela Oliver e da chef sexy Nigella, ambos ingleses. Stow encontrou a dele no livro Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto. As suas experiências na Lord Stow’s Bakery não seguiram, em rigor, a receita do livro, porque Andrew, apesar de querer agradar os clientes portugueses, queria também criar algo mais adequado ao palato dos chineses. Embora com um sabor diferente dos de Portugal, procura não lhes faltou. O sucesso foi tanto que o inglês não demorou muito a vendê-los noutros espaços que depois abriu em Hong Kong (hoje encerrado), Banguecoque, Seul, Osaka e Manila.
SABOR A PORTUGAL
Quem, «volta e meia», não resiste a um pastel de nata para matar saudades de Portugal é a jornalista Sofia Jesus, a viver em Macau desde julho de 2006. «Peço-o juntamente com o cafezinho. Aqui, há cafés portugueses que até os servem com canela, se pedirmos. Prefiro os do Café Ou Mun e os do Café Caravela, porque são feitos por portugueses e lembram-me mais os pastéis que se comem em Portugal.» Porque as diferenças, conta, são notórias. «Não sou especialista, mas o que noto de diferente nos pastéis de fabrico português em Macau é, sobretudo, o recheio. Não sei explicar, não me sabe ao mesmo. Os chineses têm um sabor mais carregado.»
Para uma lisboeta de gema, os natas da Lord Stow’s Bakery são menos doces, mais amarelados, a massa também é mais mole e servem-se geralmente muito quentes. «Acho-os enjoativos», diz a jornalista. No início Sofia torcia-lhes o nariz, mas com o tempo deixou de pensar neles como uma imitação menos bem conseguida dos portugueses, mas como «bons pastéis de nata de Macau». Quando vem a Portugal, geralmente uma vez por ano, aí sim, mata saudades dos verdadeiros numa qualquer pastelaria. E elege: «Os de Belém continuam a ser os meus preferidos.»
Em dez anos, os pastéis de Andrew Stow tiveram tal sucesso que alcançaram os balcões da gigante americana Kentucky Fried Chicken (KFC), que comprou a fórmula e passou a produzi-los em quantidades industriais, expandindo-os a todo o Sudeste Asiático. Portanto já existe, de facto, um franchise de pastéis de nata… mas não é português. Os jornais chineses já falaram da «febre das portuguese egg tarts», com «longas filas nas pastelarias» e anúncios por todo o lado «a apelar ao consumo dos pastéis».
A procura foi de tal forma que faltou aos produtores locais de ovos matéria-prima para alimentar a indústria. Muitas lojas da multinacional norte-americana limitaram o número de pastéis de nata a cada cliente. E esta medida resultou no desejo ainda maior de os comprar. José António Silva e Sousa, da Confraria do Pastel de Nata, não tem dúvidas de que foi com a KFC que se iniciou o fenómeno, recente, da produção em quantidades industriais dos pastéis de nata. Isto, aliado ao número de lojas espalhadas pelo mundo, «contribuiu para intensificar e fortalecer ainda mais a internacionalização deste doce».
O fundador da Lord Stow’s Bakery morreu em 2006; quem gere o seu legado não é a ex-mulher Margaret, que o acompanhou na construção do império das padarias, é a sua irmã Eileen, que à agência Lusa confirmou o gosto dos chineses pelos pastéis: «As duzentas unidades que vendíamos inicialmente por dia aumentaram para dez mil.» Em Macau, os grandes rivais dos pastéis da Lord Stow e da KFC são os da Margaret’s Café & Nata, da ex-mulher de Andrew Stow, e os do Café Ou Mun. Apesar do nome, que significa Macau em cantonense, o seu dono e fundador é um bem-sucedido pasteleiro português nascido na Nazaré. Chama-se Fernando Marques e acredita ter conquistado os chineses «pelo estômago».
Fernando tem 35 anos, aos 23 foi para Macau para ser chefe de padaria e de cozinha e um ano depois estabeleceu-se por sua conta e risco, «numa altura em que, por causa da transferência administrativa para a China, os portugueses estavam a sair». Abriu as portas do Ou Mun em dezembro de 2001. Hoje os seus pastéis são referência em alguns livros de viagens, entre os quais os da Lonely Planet e dos Rough Guides. Fernando não ignorou os riscos quando decidiu abrir a casa. «Fui dos primeiros estrangeiros a abrirem um negócio depois da passagem administrativa. Toda a gente tinha medo, ninguém sabia o que ia acontecer em Macau.»
Uma década passada, o sucesso de Fernando Marques todos os dias é consolidado pela afluência de clientes ao seu café, onde faz questão de disponibilizar apenas produtos portugueses, desde o próprio café (Delta) aos refrigerantes (Sumol). Até as farinhas que utiliza para fazer os pastéis de nata à moda de Portugal são de Mirandela. Faz cem pastéis por dia e quando fecha as portas, à noite, não sobra um. Vende a unidade a dez patacas (1,20 euros). Para concorrer com as lojas locais e agradar a todos os clientes, Fernando também faz imitações de pastéis de nata, por sinal «muito apreciadas por muitos chineses»: «São uma espécie de leite-creme dentro de massa folhada. Pessoalmente, prefiro os nossos e a maioria dos meus clientes também, mas há que ter de tudo para satisfazer todos os gostos.»
Do outro lado do mundo, o pastel de nata português também já faz parte da rotina dos quebequenses, no Canadá. Quem o garante é o chef Carlos Ferreira, dono de três restaurantes no centro de Montréal – entre eles o melhor restaurante da cidade. Embora tenha fabrico próprio, para alimentar o Ferreira Café, o Café Vasco da Gama e o F Bar, o empresário, natural de Estarreja, trabalha em colaboração com outra pastelaria, a Belavista, que produz 5700 natas por dia. «Fabricamos e compramos, porque infelizmente não temos capacidade para produzir a quantidade de que necessitamos, uma média de trezentos por dia nos três espaços.» A dúzia vende-a a 14,75 dólares canadianos. Faz sentido falar em dúzias, porque não são raras as pessoas que em vez de se ficaram por um pastelinho no fim da refeição «pedem uma caixa deles para levar para a família ou amigos».
O segredo está na qualidade da massa e no modo de fazer: «Tentamos fazer exatamente como se faz em Belém.» Carlos saiu de Portugal aos 19 anos (tem 56) com o irmão Júlio. Quando se meteram no negócio da restauração, diz, «não fazia sentido, sendo portugueses, não incluir na ementa dos doces uma das iguarias mais viajadas e mais associadas a Portugal».
Também à moda dos de Belém saem «quentinhos e estaladiços do forno» as portuguese egg tarts do Alfama Restaurant, em plena Nova Iorque. Considerado dos mais in da cidade, este restaurante é frequentado por quem aprecia a boa gastronomia de Portugal – entre os clientes está o embaixador português junto das Nações Unidas, José Cabral. «Ele vem cá com frequência e no fim do jantar pede muitas vezes um pastel, adora», revela Tarcísio Costa, coproprietário do Alfama. Tarcísio não é português, é brasileiro, mas o seu sócio, Miguel Jerónimo, é de Lisboa. Ambos trabalharam na ONU e quando se conheceram, há quase vinte anos, tornaram-se amigos. «As nossas conversas incluíam muito o tema vinhos, gourmet e gastronomia portuguesa. Então pensámos abrir um restaurante de sabores portugueses. Nasci no Brasil, mas os meus bisavós eram de Leiria, por isso estou muito ligado a Portugal.»
O primeiro restaurante, inaugurado há dez anos, ficava em West Village e chamava-se Fine Portuguese Cuisine. Acabaram por alterar o nome «porque intimidava as pessoas, fazia-as pensar que a comida era muito requintada». Escolheram Alfama por ser um bairro típico de Lisboa. Mudaram também de sítio, de West Village para Midtown East, devido a problemas com um «senhorio ganancioso que queria cobrar o dobro do valor da renda». A deslocação não os prejudicou, embora a clientela já não seja a mesma. Ao outro restaurante iam celebridades como Al Pacino, Harvey Keitel, Norah Jones, Kate Winslet… Mariza, a fadista portuguesa, «cantou lá três vezes e fez a apresentação de um dos seus discos».
Além dos pratos de bacalhau (espiritual e à Brás), da sardinha assada («vem de Portugal, duas vezes por semana, no avião da TAP»), do frango no churrasco, das amêijoas à Bulhão Pato e outros pratos que «fazem parte da ementa diária», não podem faltar na lista das sobremesas os pastéis de nata, feitos pelo chef alfacinha Francisco Rosa – 150 por dia. «Há quem diga que são tão bons como os pastéis de Belém». Na ementa estão a 1,50 dólares (1,18 euros) cada um.
Em Nova Iorque os pastéis de nata feitos por portugueses têm a grande concorrência dos que chegaram à América via China. Assim, em Chinatown, na parte baixa de Mahnattan, há pelo menos 43 pastelarias que vendem egg tarts. Algumas, como a New Great Bakery, distinguem entre as egg tarts e as portuguese egg tarts – sendo a grande diferença que as primeiras são queimadas e as segundas não. Na Natalie Bakery, por exemplo, há variações e pastéis de nata que mudam de cor consoante o recheio de papaia, amêndoa, tapioca ou morango. Os melhores pastéis de nata de Chinatown, rezam os guias, são os da Bread Talk, em Catherine St. Mas não se comparam, ainda segundo os guias, os da Teixeira’s Bakery, do outro lado do rio, em Newark, onde está a grande comunidade portuguesa e onde o pastel de nata manda.
VEDETA DE HOLLYWOOD
Na outra extremidade dos Estados Unidos, a portuguesa Fátima Marques contou com a ajuda dos pastéis de nata para atrair as estrelas de Hollywood. A sua pastelaria e restaurante Natas Pastries é «o único estabelecimento português» em Los Angeles. A dona foi para LA com uma bolsa de estudo de dança nos finais dos anos 1980. «A ideia era estudar e regressar mais tarde a Portugal para abrir uma escola de dança.» Ficou mais tempo do que o planeado, tudo por causa dos pastéis de nata. Depois de alguns trabalhos como dançarina, cantora e de voz off em peças para televisão, cinema e vídeo, decidiu mudar de vida. «Queria fazer algo diferente do que tinha feito. Como sempre pensei no pastel de nata como uma vedeta, lembrei-me de abrir uma pastelaria.»
Já lá vão seis anos a fazer crescer água na boca a celebridades como Nicole Kidman e Keith Urban, Gwen Stefani e Gavin Rossdale, Keanu Reeves, Ben Stiller, Joseph Gordon-Levitt, Lucy Liu, Jamie Foxx, Kevin Bacon, Elizabeth Perkins, Dave Grohl «e tantos outros», seus clientes assíduos e fãs das natas – «é assim que aqui chamamos ao pastel de nata, somente nata». A receita já a sabia, aprendeu-a numa pastelaria em Coimbra, anos atrás, e não a alterou. «É de massa folhada feita por nós e o creme leva ovos, farinha e baunilha.» Fátima vende entre cem e trezentos natas por dia, a dois dólares cada um.
MENINAS DO RIO
Maior quantidade produz diariamente uma das confeitarias mais antigas do Rio de Janeiro, no Brasil: em pleno centro histórico, a Colombo faz, em média, quinhentos pastéis de nata por dia. Atualmente nas mãos da família Assis, a Colombo foi fundada em 1894 por dois portugueses. Duas das razões por que não podia deixar de fabricar pastéis de nata (ou pastéis de Belém, como se chamam no Brasil, apesar de não terem nada que ver com os da marca Pastéis de Belém) têm que ver, também, com o momento político que os pastéis de nata estão a atravessar. «É por ser uma casa portuguesa e por os pastéis serem um produto de primeira linha no mundo inteiro», explica Renato Freire, chef executivo da Colombo há 12 anos e responsável por toda a linha de produção.
A receita que usam «é tradicional, sem alterações significativas». A massa é feita com manteiga, farinha de trigo, água e uma pitada de sal; para o recheio, leite, açúcar, farinha de trigo, aromatizando tudo com raspa de limão e pau de canela. Renato também criou uma linha de pastéis com recheios diferentes: quindim de camisola (massa do pastel de nata, com recheio de coco do quindim), pastel de avelã (recheio à base de avelãs, creme de feijão branco e gema), pastel de cartola (massa e creme do pastel de nata com recheio de banana e queijo de coalho grelhados) e o pastel de chocolate com pimenta. «Saem todos muito bem e são exclusivos da Colombo.» Isto num lugar onde o «pastelzinho», doce e salgado, é rei.
A ligação a Portugal é o fio condutor que percorre o sucesso dos pastéis de nata no estrangeiro. São seis portugueses os proprietários da Casa Portuguesa, que em Barcelona, aqui ao lado, em Espanha, vende pastéis de nata a uma clientela exigente. A própria decoração da casa, descreve um dos donos, Pedro Miguel Ramos, não engana. «Remete para o ambiente acolhedor de uma casa, com uma zona de pastelaria, várias zonas gourmet e uma boa garrafeira só de vinhos portugueses.» Para a escolha do nome ajudou o facto de Casa Portuguesa se escrever «igual em português, castelhano e catalão, o que facilita a comunicação». Dos doces, o mais procurado é o pastel de nata. «Fazemo-lo porque é o mais típico de Portugal e com maior reconhecimento a nível mundial».
Em 2005, ano em que abriram o restaurante, a iguaria já era muito apreciada em Barcelona e com a Casa Portuguesa a fabricar diariamente, vangloria-se Miguel, «aumentámos exponencialmente o número de fanáticos por este pequeno pastel». Por dia, durante a semana, são mais de duzentos, mas aos fins de semana chegam a ser setecentos. E nas festas de agosto do Bairro de Gracía, onde a Casa Portuguesa está localizada, vendem mais de mil por dia, a 1,20 euros cada um. Seguem a receita tradicional. Para a massa folhada crocante, cuidam de utilizar «as melhores margarinas do mercado», o creme fazem-no com calda de açúcar com raspa de limão e pau de canela, farinha, maisena, leite e gemas de ovos caseiros. A diferença apenas consiste na quantidade de açúcar: «Reduzimos dez por cento do açúcar para se adaptar melhor ao paladar espanhol e internacional.»
EM LONDRES, AOS MILHARES
Londres já é poiso certo para os pastéis de nata, sobretudo na Lisboa Patisserie, no bairro de Notting Hill – que antes de ser chique (e nome de filme) albergou a comunidade portuguesa. Aberta há 28 anos por um português da Mealhada, Carlos Gomes, esta pastelaria serve todos os dias novecentos pastéis de nata e aos fins de semana entre 2000 e 2500. «Não temos mãos a medir. Os clientes fazem fila até à rua. É uma loucura. As pessoas têm de estar meia hora na fila para apanhar um pastel», diz o dono. Feitos de acordo com a receita tradicional por nove pasteleiros portugueses, Carlos garante que «são iguais aos que se fazem em Portugal», não sendo pois de admirar que as custard tarts sejam «os bolos mais conhecidos na capital inglesa». Oitenta por cento dos seus clientes são ingleses, os restantes são portugueses e espanhóis residentes em Londres e turistas. No Lisboa Patisserie, cada pastel custa 1,05 libras (1,15 euros).
BERLIM, ALÉM DAS BOLAS
Este retrato dos pastéis de nata à volta do mundo peca por ser demasiado monocolor. Na verdade há muitos estrangeiros que se renderam a eles e que contribuíram para a sua internacionalização, basta ver o exemplo do inglês que os levou para Macau. O empresário alemão Axel Burbacher, de 43 anos, quando abriu em Berlim o Café Galão, não teve dúvidas de que, entre a vasta doçaria que queria oferecer aos seus clientes, teria de estar o pastel de nata. E sem tradução. «Aqui chama-se pastel de nata. As pessoas já sabem o que é, estão acostumadas ao nome.» Axel não os fabrica, compra-os no padeiro que lhe fornece também o pão e os croissants. «Tenho a garantia de que os faz como se fazem em Belém de Portugal.» Para já, vende entre cinquenta e oitenta pastéis por dia, a 1,20 euros cada um, mas acredita que «dentro de pouco tempo terá de encomendar mais, porque tem acontecido os clientes pedirem e não haver».
Segredos à parte – que fazem que a massa folhada seja mais ou menos crocante e o creme mais ou menos tostado -, a receita, como já se disse, universal, está em qualquer livro de culinária e na internet. O mediático chef Jamie Oliver incluiu-a no seu livro de receitas rápidas 30 Minute Meals e a cozinheira Nigella colocou-a no seu site www.notquitenigella.com, porque, revela, «sempre gostou muito de pastéis de nata portugueses» e quando os faz oferece alguns ao pai, porque é um dos «seus bolos favoritos».
E para confirmar a internacionalização dos natas, nada como acabar quase nos nossos antípodas, dando uma volta quase perfeita ao mundo. Foi em Melbourne, na Austrália, que o casal de portugueses Alexandre e Laurinda viu no pastel de nata português uma promissora oportunidade de negócio. Até o nome da casa que abriram, nos anos 1980, sugeria a origem – Belém Bakery (em português, Padaria de Belém). «Nesse tempo, não havia muitas padarias a fazer pão e bolos portugueses. Então os meus pais decidiram oferecer aos seus conterrâneos que viviam em Melbourne um saborzinho a Portugal, algo que os fizesse sentir mais próximos de casa.» Quem conta é a filha, Andrea Lopes. Ela e o irmão Alex são a segunda geração de proprietários (os pais reformaram-se) e fazem questão de manter o legado.
E querem seguir a tradição em tudo, inclusive no modo artesanal com que fazem os produtos, essencialmente pão e bolos, entre os quais se destacam na preferência dos clientes os pastéis de nata. Ou, como se diz na Austrália, custard tarts. «Fazemo-los como nos velhos tempos, com a massa folhada e o creme, os ingredientes são os mesmos. Os nossos pais querem que sejam o mais tradicionais possível e é por isso que vamos a França buscar a manteiga.» Não há registo de que os pastéis de nata portugueses levem manteiga francesa. Mas essa particularidade não impede os australianos de «morrerem de amores» pelas custard tarts da Belém Bakery. Andrea diz que na Austrália gostam tanto delas que tiveram de construir uma fábrica maior para poderem aumentar a produção diária para 2500 pastéis.
Não é certamente exagero dizer que se vendem milhões de pastéis de nata no mundo inteiro. E que este é o mais internacional dos bolos portugueses.
O NOVO CUPCAKE
No bairro parisiense do Marais, há filas do tamanho de um quarteirão para comprar pastéis de nata. Os jornais dizem que o doce português está na berra, «é o novo cupcake». Vítor Silveira, proprietário do Comme à Lisbonne, não tem mãos a medir. Ricardo J. Rodrigues, em Paris
Ao domingo à tarde, a rue du Roi de Sicile, em Paris, é um mar de gente. Há famílias e casais de namorados, crianças e velhotes, e todos parecem desaguar no Comme à Lisbonne, uma pastelaria que vende conservas Tricana, chocolates Arcádia, café Delta e pastéis de nata quentinhos. O espaço é apertado, por isso a fila à porta contorna o quarteirão e quase chega à rue du Rivoli, a principal artéria do bairro do Marais, bem no centro da cidade. «Abrimos no verão passado e não imaginávamos ter este sucesso», garante Vítor Silveira, 43 anos, proprietário e cozinheiro de serviço.
Há muitos locais na capital francesa a vender o doce português, mas invariavelmente estão localizados nos subúrbios, junto às áreas residenciais da comunidade emigrante. Setenta por cento da clientela do Comme à Lisbonne é parisiense e não são poucos os que vêm do outro lado da cidade. «Começámos a conquistar as pessoas pelo cheiro e pelo aspeto. Tenho os pastéis numa montra virada para a rua, tento servi-los sempre quentes, e em pouco tempo a coisa começou a ficar badalada.» Num domingo sem chuva, Vítor vende mil pastéis de nata, a dois euros a unidade. Jornais como o Metro ou o Eurostar, distribuídos gratuitamente nos transportes públicos e por isso com grande expansão, dizem que «nasceu uma nova estrela» na pastelaria fina da cidade. «Como o cupcake, há meia dúzia de anos.»
Vítor aprendeu a receita com a mãe, uma açoriana de Angra do Heroísmo que emigrou para New Bedford, nos Estados Unidos, quando ele tinha 7 anos. «Aos domingos tínhamos o ritual de fazer pastéis de nata e ela, que trabalhava numa fábrica, levava alguns para oferecer às colegas. De repente começou a receber encomendas e a família toda tinha de ajudar na cozinha.» Há dez anos, depois de estudar literatura francesa em Boston e gestão em Nova Iorque, Vítor regressou a Portugal. Abriu um bar em Lagos, mas aos poucos cansou-se da noite. Em 2009, quando a crise começou a bater a sério, vendeu o estabelecimento algarvio e mudou-se para Paris. «Cheguei logo com a ideia dos pastéis de nata.» Em junho do ano passado, o Comme à Lisbonne abriu portas.
«Isto só funciona porque somos muito cuidadosos na preparação», atira, para logo a seguir elaborar toda uma tese sobre os pastéis de nata. A massa tem de ter a consistência certa, para ficar leve e estaladiça. O recheio tem de estar no ponto, cremoso mas não em demasia, doce mas não enjoativo. «As próprias caixas onde servimos as meias dúzias têm uma imagem que potencia a fineza do produto. Apostamos na qualidade e vencemos. Se apostássemos na quantidade, estávamos feitos.» Por isso é que Vítor discorda da ideia do ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, de que deveria existir um franchising de pastéis de nata. «É uma obra de arte da gastronomia, não pode ser feita em série. Porque acham que os pastéis de Belém funcionam como funcionam? Porque se mantiveram genuínos. Podemos exportar este produto, mas não podemos fazer dele um donut.»
Ricardo J. Rodrigues, em Paris
UMA DOCE HISTÓRIA
A infanta D. Maria de Portugal (1538-1577) não podia imaginar que, ao publicar no resguardo e intimidade da sua escrivaninha a receita dos «Pastéis de Leite», na segunda metade do século xvi, estaria a dar início a uma saga que sabemos ainda longe do fim. Menos ainda que estava, com o singelo e, apesar das aparências, leve bolo, a criar um emblema da diáspora portuguesa. Falamos do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal, da lavra da neta de D. Manuel I, filha de D. Duarte, dada em casamento ao terceiro duque de Parma, Piacenza e Guastalla. União que, de resto, criou uma linha de suposto direito à coroa que ainda hoje se sente.
Há pessoas assim, por quem não se dá conta no seu tempo mas que se agigantam quando a história começa a ser feita. Ao ser o pastel de Belém considerado maravilha gastronómica portuguesa, reconheceu-se em definitivo que se trata de assunto importante. Pastel de nata, no entanto, é coisa maior. Trabalha com receita aberta e tem a sua estaca cravada na simplicidade culinária. João Ribeiro, chef do ido Hotel Aviz, em Lisboa, fixou nos anos 1930 uma receita à base de leite, farinha e calda de açúcar para o recheio, enquanto António Maria de Oliveira Bello (Olleboma) deixou uma outra (publicada no limiar dos anos 1940), baseada em natas, para os pastéis das ditas. Dois caminhos convergentes para um só fim, o da delícia. A massa folhada era coisa já existente mas incipiente no tempo da infanta – e claramente assumida no início do século xx pelos mestres pasteleiros de orientação francesa a trabalhar em Portugal. A escola francesa ainda hoje é determinante na alta-pastelaria no nosso país. Não espanta pois que não se resistisse a materializar e conter o requintado sabor dos pastéis de nata em crocante forma folhada.
A doçaria conventual é excelsa em Portugal e vive, como se espera, de mitos. O mais frequente e enganador é que os frades e freiras que os ocupavam se entretinham a fazer coisas doces. Na verdade, é exatamente ao contrário. Se a doçaria conventual é hoje conhecida, é graças ao facto de os oficiantes serem principalmente pessoas de fora dos conventos e mosteiros. O dote para se manter uma religiosa era acessível apenas às famílias com fortuna; por isso saía-se e entrava-se, pagando a guarida com trabalho. Ainda bem que assim aconteceu, senão não tínhamos Arouca, Vila Real, Portalegre ou Évora no grande mapa do mundo supremo da pastelaria.
O caso da Fábrica dos Pastéis de Belém é ligeiramente diferente, embora na sua essência seja semelhante. A extinção das ordens religiosas nos anos trinta do século xix levou à expulsão dos ocupantes dos conventos e à expropriação dos edifícios. Nos Jerónimos, isso não afetou o negócio que já corria consolidado, justamente pelas pessoas que trabalhavam no mosteiro e que foram, por efeito da nova ordem política, despedidos. Na verdade, o que é hoje conhecido como pastel de nata era ali confecionado. Com um pequeno pormenor: o segredo. A «sala do segredo», que ainda hoje se mantém viva, é mantida longe do olhar e visita do cidadão comum. E isso resulta num facto: o pastel de Belém é um pastel de Belém. O pastel de nata é um pastel de nata. O primeiro tem de se comer quentinho, o segundo come-se quente, frio e até três dias depois está bom.
Fernando Melo
[publicado originalmente na edição de 29 de Janeiro de 2012]