Não fazer outsourcing das memórias

Notícias Magazine

Na semana passada fui ao concerto de um cantor que an­da toda a gente a ouvir. Fiz uma refeição fantástica – restaurante lindo, ementa elaborada, desenhada à medida dos vinhos que a acompanhava, uma bela vista para o rio Tejo e, na minha mesa, quase quase à minha frente estava um ator de Hollywood, tão fa­moso como charmoso. Voei até uma ilha que é considerada uma das maravilhas do mundo, estive no meu lugar favorito do meu mundo, duas lagoas que o destino uniu, como nos romances, uma azul e outra verde, num vale que já foi cratera de vulcão e hoje ex­plode em verdes. Fiz isto tudo sem tirar uma única fotografia. Pior, sem postar uma única fotografia, nem no Facebook nem no Instagram. Guardei as minhas memórias para mim. E assim, sem testemunhas, saboreei-as. Não me souberam nada mal.

Antigamente, nesse antigamente em que não havia máqui­nas fotográficas em qualquer telefone e as redes sociais não nos tomavam o tempo que temos para socializar, nesse tempo que tem meia dúzia de anos, eu não tirava fotografias. Nem aqui nem em viagem. E se fui a lugares com que sempre tinha sonhado… Em parte, havia uma carga de autoproteção na minha decisão: con­fesso, não sei tirar fotos, nunca o que imagino é o que vem revela­do. E para tirar más fotos preferia não tirar fotos. A outra parte era um pouco mais complexa.

Na prova geral de acesso que fiz para entrar na facul­dade, o texto que saiu para analisar era sobre registos. Os que co­lecionávamos e como atravancávamos a nossa vida e a dos outros com eles. Fiquei a pensar nos que me sucedessem a recolher com enfado as milhares de fotografias que nada lhes diriam. Com problemas de consciência de as deitarem fora, mas a colocá-las num arquivo morto. Viajante ligeira, nas bagagens e na vida, horrorizei-me.

A questão volta a pôr-se agora com mais premência desde que o digital banalizou a fotografia e a internet a socializou. Muito há a dizer sobre um tema passível de análises sociais, an­tropológicas, semióticas. Dizia a Susan Sontag no seu livro sobre o tema que a fotografia, «o próprio ato de fotografar suaviza o nos­so sentimento geral de desorientação». Percorremos a nossa cro­nologia com as fotografias dos pratos que comemos, dos amores que tivemos, das vistas que vimos e dos lugares onde fomos aju­da-nos a dar um rumo à nossa vida. Para nós próprios e para o mundo que nos rodeia.

De caminho, estamos também a fazer um outsourcing das nossas memórias. Deixamos de ser responsáveis por elas porque elas estão ali guardadas fora da nossa cabeça, vão estar ali, para sempre. E acontece-lhes o mesmo que acontece aos arquivos, por exemplo, de uma empresa, quando são dados a guardar a uma ou­tra entidade. Uma vez por outra vamos lá debicá-las, às memórias. E acontece que vemo-las de forma diferente. O nosso eu futuro ti­rará novas conclusões sobre o nosso eu passado.

Estudos recentes indicam isso mesmo: que as memó­rias se apagam mais depressa quando são guardadas, não a olho nu, mas através de uma câmara. Lembramo-nos melhor de por­menores quando olhamos para as coisas. É a isso que quero vol­tar. Na semana passada fiz coisas fantásticas e não as partilhei no Facebook. Vamos ver se consigo manter o hábito. Em ambas as vertentes.

Publicado originalmente na edição de 23 de novembro de 2014