Não era tão fácil como levar Andie MacDowell para a cama

Notícias Magazine

O Dia da Marmota começa por ser um dia de tradição mais ou menos parva. Uma cidadezinha da Pensilvânia de nome difí­cil, Punxsutawney, celebra a 2 de fevereiro a saída de uma mar­mota da toca gelada. Se ela se assusta com a sombra e regressa à toca, a América tem mais seis semanas de inverno. Se ela não se amedronta e anda por ali, até falando com o presidente da comis­são das festas, o único que percebe marmotês, este, de chapéu al­to, anuncia que a primavera será prematura. A marmota, chama­da Phil, é sempre a mesma desde 1887, e os empata-tradições não vale a pena virem com sarcasmos, tipo «as marmotas só vivem seis anos…» Para alguns também parece inverosímil que o Anjo tenha visitado D. Afonso Henriques antes da Batalha de Ourique e fala­do das cinco chagas de Cristo. Mas o facto é que há cinco besan­tes brancos nas cinco quinas a lembrar a conversa no aludido en­contro, e isso nota-se de cada vez que a bandeira portuguesa é iça­da. As tradições não são para ser explicadas com lógica terrena.

Já guinei numa estrada da Pensilvânia obrigando-me a fazer mais de cem quilómetros, só para visitar Punxsutawney, cidade que descobri sem interesse. Ainda por cima, em altura irrelevante para a duração da neve, o meu Dodge ia de capota aberta, era agosto. Só então soube que O Feitiço do Tempo, o que mais me trazia ali, um fil­me sobre o Dia da Marmota, com Bill Murray e Andie MacDowell, fora feito muito longe, em Woodstock, no Ilinóis.

A história do filme: um meteorologista de televisão (Bill Murray), indo cobrir o Dia da Marmota, descobre que acorda no dia seguinte repetindo o dia anterior. Infinitamente repetindo e só ele sabendo. Repararam que esse é o quotidiano de Deus, o único se­nhor do infinito? Se eu sei que no dia seguinte tudo recomeça igual, posso, claro, fazer o que me der na veneta no novo dia. Até o irreme­diável, porque esse nunca o é, irremediável. O Feitiço do Tempo é uma bela comédia e Bill Murray conduz os seus repetidos dias com um objetivo que eu não posso deixar de confessar que seria também o meu. Se eu fosse Deus por 24 horas tentaria conquistar Andie MacDowell. Pelo menos nos anos 90, quando o filme foi lançado.

Acontece que o sucesso de O Feitiço do Tempo criou uma ex­pressão na língua americana, o «dia da marmota» (groundhog day), que ultrapassou a tradição ingénua de Punxsutawney e invadiu os terrenos perigosos da guerra e da economia. Já em 1996, o Presi­dente Bill Clinton discursou sobre o «dia da marmota», sempre quase igual, ligando-o ao quotidiano repetido dos soldados ame­ricanos na guerra dos Balcãs. Depois, o termo prolongou-se du­rante a ocupação do Iraque. O soldado vivia um dia, outro igual a seguir e assim sucessivamente, com pequenas mudanças como cada Dia da Marmota no filme. Por seu lado, na economia, há dez anos, o dia da personagem meteorologista era teorizado como o caminho a fazer: os economistas ao fim do dia deveriam fazer as contas do que erraram e no dia seguinte que lhes era mais uma vez oferecido introduziam os novos dados que iriam levar o mercado à perfeição. Os soldados acordariam no Dia da Marmota que os le­vava de volta a casa e os economistas atingiriam o seu Dia da Mar­mota com o mercado em equilíbrio perfeito…

Só que a vida real deve resistir à tentação da arte, porque não pode imitá-la. O desastre que é o Iraque hoje e a constante cri­se económica internacional demonstram-no. A personagem de Bill Murray podia abusar, já o disse, porque era ficção – nada do que ele fazia era irremediável. Ora os abusos no Iraque já torna­ram este irremediável, mesmo, e os experimentalismos na econo­mia mostram que ninguém sabe para onde ir. Bill Murray sabia, levou Andie MacDowell para a cama.

Publicado originalmente na edição de 29 de junho de 2014