
Há ruas e jardins cheios de gente a dançar. Há rapazes de laços e chapéus, há raparigas com saias rodadas. Há festas atrás de festas, sempre ao som de jazz dos anos trinta. O lindy hop é uma dança vintage e está a tomar conta das cidades portuguesas. A dias de arrancar em Lisboa um festival que quer ser dos maiores da Europa, vamos ao baile.
Todos os domingos há festa ao ar livre. Quem passar pelo lisboeta Jardim da Estrela, ou pela portuense Casa da Música, arrisca-se a ver um grupo de pessoas a dançar aos pares, passos rápidos e depois lentos. Fazem círculos e parece que vão desprender-se, mas depois reaproximam-se, saltam por cima uns dos outros, e têm uma sincronia perfeita – como raio conseguem fazer aquilo? Isto é o lindy hop, uma dança nascida no bairro nova-iorquino do Harlem nos anos 20 e 30 do século passado. Dança-se ao som do jazz negro da mesma época e há cada vez mais portugueses a praticá-lo.
«Entre Lisboa e Porto tenho neste momento perto de trezentos alunos», diz Abeth Farag, 37 anos, a norte-americana que em 2007 trouxe esta dança para Portugal. Entre os que frequentam as lições da escola que ela mesmo fundou (a Swing Station), os que aprenderam alguns passos em festas e eventos ao ar livre ou os que fizeram aulas abertas, os praticantes de lindy hop em Portugal contam-se por uns poucos milhares. «O movimento está a crescer muito e muito rapidamente. Quando cheguei a Portugal, nunca ninguém tinha ouvido falar disto, agora já vamos ter um grande festival internacional, com gente do mundo inteiro.»
De 5 a 8 de junho, Lisboa vai receber a quinta edição do Atlantic Swing Festival. Metade dos inscritos (mais de três centenas) são portugueses, outros tantos estrangeiros. «Este ano as coisas estão a melhorar bastante, vamos ter alguns dos melhores dançarinos e bandas do mundo», diz Abeth. «E estamos a tentar criar um conceito diferente, que diferencie este festival de todos os outros do género. Lisboa está a criar condições para se tornar numa referência europeia do lindy hop.» O clima e o ambiente ajudam, admite ela. Haverá aulas de dança e bailes na rua, mas também um mercado de roupa retro e aulas de jazz da época para músicos. O Armazém F, o Lisboa Ginásio Clube e os largos do Martim Moniz e do Intendente são os cenários da festa. A capital que se prepare, vem aí o ritmo do Harlem.
Foi no Porto que as coisas começaram a aquecer, em 2007. Abeth chegou à cidade para dar aulas de Inglês e, ao mesmo tempo, decidiu fazer um curso de sapateado. «Comecei a falar aos meus colegas do lindy hop e alguns, poucos, ficaram curiosos.» Isabel Fonseca foi dessa primeira leva. Tem 41 anos e continua tão entusiasmada com a dança swing como no primeiro dia, «porque é impossível praticar lindy hop sem um sorriso aberto na cara». Agora ela própria é professora nos tempos livres, gestora de empresas no horário de expediente. «Quando começámos, não éramos mais de quatro. Íamos para a frente do [café] Piolho, púnhamos a música a tocar no carro e dançávamos na rua.» Quando arranjaram gente suficiente, mudaram-se para um ginásio, a Academia de Artes do Porto. É lá que ainda praticam.
Hoje há aula para as turmas avançadas, muitos dos que ali estão são professores. Edmilson Botelho é o último a chegar, mas tem uma boa desculpa: acabou de arranjar trabalho em telemarketing, para ajudar a pagar os estudos. Tem 21 anos, veio há dois de São Tomé e Príncipe para estudar na universidade. Começou em Engenharia Eletrotécnica, mudou para Design de Equipamento. «Uma amiga levou-me a uma festa e eu fiquei fascinado. Sou africano, esta é uma dança muito africana, mas no meu país não se dança.» Quando os pares se começam a juntar, o rapaz é todo lindy hop. Não tinha dinheiro para pagar aulas, mas Abeth deixou-o frequentar as lições à mesma. É um talento nato e há de tornar-se professor. «Quando voltar a São Tomé, hei de levar esta alegria toda para lá. Esta dança é criatividade pura e diversão constante. Vai bem com África.»
Frankie Manning foi um dos maiores talentos do lindy hop e há dias houve uma festa no Sobralinho, perto de Vila Franca de Xira, para homenagear o centenário do seu nascimento. Durante a tarde cumpriram-se dois workshops, um para iniciados e outro para quem já tinha algumas passadas no currículo. Abeth ensinava as raparigas e Bruno Henriques, um dos professores da Swing Station, os rapazes. No lindy hop existem leaders e followers. São os rapazes que determinam as mudanças de direção, o que a mulher vai fazer a seguir. «Mas isso não é nenhum ataque ao feminismo», diz Lia Pinto, 32, que começou as aulas em outubro. «O teu par dá-te o mote e tu depois aplicas a tua criatividade, insinuas o caminho a seguir. Tem mais que ver com diálogo do que com dominância.»
Ao longo do dia, o Palácio do Sobralinho foi-se enchendo. Para o jantar toda a gente trouxe comida de casa e fez-se um piquenique nos jardins. Depois passou um documentário sobre a vida de Manning. Frankie nasceu em Jacksonville, Florida, em 1914, mas mudou-se para o Harlem aos três anos. Frequentou o circuito do lindy hop na adolescência e, nos anos 1930, começou a ser residente no Savoy, o mais mítico salão de baile da comunidade negra nova-iorquina. Até à casa fechar, em 1958, Ella Fitzgerald e Sammy Davis Jr. eram figuras regulares, cantavam e dançavam com Manning. O homem também fez parte dos Whittey’s Lindy Hoppers, um grupo profissional de dançarinos que entrou numas quantas peças da Broadway e produções de Hollywood. Quando o rock’n’roll veio roubar o espaço ao jazz, o grupo desmembrou-se. Não fosse Manning e a dança teria desaparecido. Nos anos oitenta andou a ensinar os velhos passos a gente nova nos Estados Unidos, na Austrália, na Suécia. Morreu em Nova Iorque, em 2009. É por causa dele que há esta noite baile no Palácio do Sobralinho.
Está uma banda em palco. Ainda não tem nome, mas já tem ritmo afinado. Um pianista americano chamado Kent Queener dá voz ao grupo, que também tem três músicos portugueses (Luís Neiva na bateria, Flávio Neves na guitarra e André Galvão no contrabaixo) e um italiano (Federico Pascussi no saxofone). «No jazz, a maioria dos músicos gosta de música mais livre, gosta de improvisar. Mas esta tradição das big bands, que durou dos anos vinte aos quarenta, dialoga com o público e tem uma qualidade incrível.» Hão de passar a noite a recuperar temas antigos, a dar-lhes variações originais, 2014 no Sobralinho é como 1935 no Harlem.
O salão encheu, quase não há espaço para tantos circles e promenades e swingouts. Há médicos, cientistas e jornalistas na pista e todos saltam que se fartam. A maioria dos bailarinos tem entre os 25 e os 40 anos, mas há mais novos. E há mais velhos. As miúdas usam saias que rodam, ou vestidos rockabilly. Os rapazes têm suspensórios e chapéus ou então coletes e gravatas. Repetem as coreografias da tarde, inventam passos, está tudo num caos perfeitamente ordenado. Gil Dias, um arquiteto de 32 anos, arrisca-se no centro do baile. Há dias partiu o dedo mindinho do pé, a treinar com a namorada uns passos de charleston. «Pus-me a dançar em casa descalço, não foi boa ideia. Mas, olha, gosto tanto disto que vim à mesma.» À sua volta, braços e pernas e pontapés que se encaixam numa perfeição incrível. Corpos suados, sorrisos rasgados, uma alegria extraordinária. Rápido, rápido, lento, lento. Venha mais música, a festa não pode parar.
BAILAR COMO ANTIGAMENTE
Podemos chamar-lhe uma onda ‘vintage’. Ou ‘retro’. A verdade é que não faltam opções para quem quer aprender os passos do passado. Só não dança quem não quer.
Na dança, depois de décadas de desprendimento, os corpos voltaram a tocar-se. O que era antiquado ganhou adeptos, há pares que querem aprender os passos juntos. Vejam-se as danças de salão, com cada vez mais público. Os Alunos de Apolo, em Lisboa, ou a Escola de Dança do Porto têm vários programas para aprender os clássicos – da rumba ao chachachá, do paso doble à valsa. Mas há uma dança que explodiu em termos de oferta nos últimos anos: o tango. Numa pesquisa rápida pela internet encontram-se por todo o país uma vintena de escolas que ensinam os movimentos da sensualidade argentina. Cursos com mais e menos duração, ao som das canções de Gardel. Em menor escala, o mesmo se aplica à salsa, sobretudo em Lisboa e no Algarve. O flamenco também tem ganho entusiastas, tal como as danças africanas e o forró. Mas se quer a oportunidade de experimentar isto tudo, o melhor é rumar a Castelo de Vide na primeira semana de agosto e inscrever-se no Andanças, o festival virado para as danças populares, mas que costuma apresentar opções em todas as áreas.
Crónica
DOIS PÉS ESQUERDOS
Por Ricardo J. Rodrigues
Ainda há dias ia a passar pelo Largo do Martim Moniz e a Joana chamou-me, «anda lá dançar». No centro da praça, as colunas debitavam um groove fantástico. Havia uma multidão de curiosos a rodear uma vintena de pares, e estes bailavam ao som de Peggy Lee. Eu trazia dois sacos carregados de compras, pousei-os numa cadeira e vamos lá a isto. Rápido, rápido, lento, lento. Fui ficando, na verdade acabei por ficar a tarde inteira, a saltar sob o sol inclemente de Lisboa. Quando cheguei a casa e abri os sacos das compras, a manteiga estava quase líquida e o queijo tinha derretido ao ponto de se fundir.
Comecei a dançar lindy hop em outubro do ano passado, depois de um casal amigo me ter convidado para uma aula aberta. E eu, que sempre tive dois pés esquerdos, atinei com aquilo. Os passos batiam certo com a música, e a música era uma maravilha. Convenci a Anabela a inscrever-se como meu par – e para persuadi-la levei-a a uma festa. Agora, que eu tive de deixar de ter lições por falta de tempo, ela continua firme nas aulas. De vez em quando ensina-me o que aprendeu. E às vezes bailamos todo esse jazz, mas ao som de rock.
Como no lindy hop os pares vão rodando, um tipo acaba por dançar com um monte de gente. Daí ser justo que o leitor saiba isto: esta reportagem não foi escrita com distanciamento, há entrevistas feitas em swingout e ambientes descritos em promenade. Já não tenho aulas de lindy hop, mas hei de agradecer sempre a esta dança ter-me tirado os dois pés esquerdos. E a prova é que, agora, quando vou a caminhar pelas ruas da cidade, não são poucas as vezes em que salto e faço os calcanhares bater um no outro. Só porque me apetece.