Fado Bacalhau

Notícias Magazine

No início do século xx, o meu bisavô, José Francisco Bacalhau, abriu uma casa de pasto (nome que tomava aquilo que agora chamamos «restaurante»), chamada O Bacalhau. Nela, para além de boas refeições, caseiras e bem servidas, como era regra na altura, cantava-se o fado «fora de portas». Situada que estava a casa de pasto na Venda Nova, mesmo junto às Portas de Benfica e ao seu castelo, pertencia portanto ao concelho de Oeiras (o município da Amadora só foi constituído mais tarde). O fado, então lisboeta de gema, se era cantado fora das portas da cidade, tomava para si o epíteto «fora de portas». A minha família paterna, lisboeta de gema também ela, sempre gostou muito de fado. A maior parte deliciava-se a ouvi-lo e uma pequena parte cantava ou tocava guitarra de forma amadora. Nas festas de família, sempre se ouviu cantar o fado e o meu avô, que trabalhava num paquete, viajando por todo o mundo, e o meu tio, quando morreram, deixaram uma vasta colecção de discos raros que foram coleccionando ao longo dos anos.

Foi neste ambiente que fui conhecendo o fado, primeiro, como algo que estava ali à mão e sobre o qual não tinha grande curiosidade de aprender, fruto da idade imatura. No entanto, a matriz já estava instalada e quando, mais tarde, vim a procurar conhecer melhor o fado e, até, cantá-lo em casa, acompanhando os discos de Amália, Hermínia ou Alfredo Marceneiro, alguns dos seus códigos já haviam sido apreendidos por mim desde aqueles dias de reunião familiar. As suas melodias, os requebros da voz, os trinados das guitarras, tudo me parecia familiar porque fez parte da história da minha família. Contudo, nunca me deu para cantar fado fora de portas: fora das portas de minha casa. Havia e há algo de muito sagrado para mim no cantar-se fado e o meu medo de não estar à sua altura fez que nunca tivesse tentado aproximar-me dele. Muitos dirão que Deolinda é uma aproximação ao fado. É certo que sim, e foi o mais próximo que consegui estar do seu canto sem ter suores frios e borboletas no estômago. Afinal de contas, para além de toda a história do fado, tão rica e tão vasta, há a minha história pessoal, a história das pessoas da minha família para quem esta canção foi tão importante e que laçou memórias tão fortes.

Há uns meses, surgiu um convite por parte do Festival Caixa Alfama, um festival totalmente dedicado ao fado, para fazer um concerto especial onde cantasse fado. Eu sabia que este dia haveria de surgir. E nunca me senti preparada convenientemente para ele. Tenho um medo terrível de falhar. Porque é a primeira vez que vou cantar fado em público, porque é a primeira vez que alguém da minha família paterna vai cantar o fado de forma profissional. Represento-os nesse amor pelo fado que os uniu em tempos e que me une a eles, mesmo depois de terem morrido.

Perguntava-me umajornalista de que forma uma adolescente de 16 anos se conseguia relacionar com uma forma musical e poética tão intensa. Precisamente por isso. Aqueles poemas, especialmente o trabalho de Amália nos anos 1960, contam os meus segredos mais bem guardados. O desespero, a tristeza. Mas também a alegria, a traquinice, o castiço. Tudo está no fado. E para que o fado aconteça, o canto tem de se entregar sem reservas. Durante os ensaios, percebi o quão exigente física e psicologicamente é cantar-se fado. Sai-nos do pêlo, do coração, das entranhas. É isso que irei tentar, mesmo tendo a consciência de que não sou fadista, nem tenho pretensões de o ser. Mas vivo tudo à flor da pele e sou uma alma inquieta. Rezo para que essas características possam ajudar-me na hora de subir ao palco e que, de repente, se faça silêncio na sala, porque ali se cantou o fado.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

Publicado originalmente em 21 de setembro de 2014