Abraçar desconhecidos por causa de um golo. Fazer promessas a todos os santos a troco de uma vitória. Cumprir rituais religiosos, mesmo que não se seja crente. Chorar como um menino numa eliminação. Saltar de alegria com a viragem de um resultado. «O futebol não é uma questão de vida ou morte», dizia Bill Shankly, antigo treinador do Liverpool. «É muito mais importante do que isso.»
Se a seleção portuguesa não ganhar o Mundial, Henrique Costa quer que o vencedor seja o Uruguai ou a Argentina. «Porque nessas equipas estão jogadores do meu clube, o Benfica. O Maxi Pereira, o Enzo Pérez e o Garay.» Depois reformula as contas, também não fica nada chateado com uma vitória do Brasil ou da Grécia. Mas então os gregos não ganharam o Euro 2004 a Portugal? «Sim, mas eles têm dois jogadores que já foram do Benfica e de quem eu gosto muito: o Karagounis e o Katsouranis. No Brasil jogam o David Luiz e o Ramires, que também eram benfiquistas. E ainda gosto da Bélgica, que tem o Witsel.» Henrique está prestes a fazer 10 anos. Gosta de jogar futebol no campo e na consola, gosta de ir ao estádio ver os desafios e gosta mesmo, mesmo muito de ir ao Marquês de Pombal celebrar as conquistas dos encarnados. Os seus desenhos animados preferidos são Oliver e Benji, Futebol Galático e Inazuma Eleven – todos nipónicos e todos sobre futebol.
Em casa, o rapaz passa o tempo a brincar com as figuras de futebol da Playmobil. Nos tempos livres, joga nas seleções infantis do Benfica. Começou a frequentar os treinos depois de fazer um campo de férias desportivas no clube. No final dessa semana, a miudagem foi ao Estádio da Luz e Henrique ia vestido com uma camisola com o número 10, de Pablo Aimar. «Era o dia do jogo de apresentação contra o Mónaco e levaram-nos para os túneis, íamos entrar de mãos dadas com os jogadores.» Mandaram-no substituir a camisola oficial por uma neutra, com os logótipos dos patrocinadores. Henrique queria mesmo era entrar com o equipamento oficial, mas às tantas sentiu uma mão pegar na sua. «Era o Aimar», foi o dobro da surpresa. «Disse-lhe logo que tinha uma camisola dele, e que gostava muito de o ver jogar.» Nesse jogo, o médio argentino acabaria por marcar um golo, confirmando todas as certezas que um miúdo de 6 já tinha: ali estava um gigante, mesmo que só medisse 1,70 metros.
Os pais de Henrique são entusiastas do futebol, mas não deixam de tentar controlar os ímpetos do filho. «Ele está na seleção infantil do clube, é verdade. Mas só estará enquanto isso for um divertimento, não uma obrigação», diz Inês Queiroz, a mãe. «E claro que também o estimulamos com outras coisas, livros e música. Há vários anos que ele tem aulas de violoncelo e a filosofia é a mesma que para a bola: é um passatempo, não é o centro do mundo.» O rapaz diz que não tem aspirações a tornar-se futebolista profissional, mas também é verdade que aprendeu a ler sozinho aos 5 anos, fazendo corresponder as letras com os nomes dos jogadores que via nas cadernetas de cromos. E, desde os 2 anos, o seu grande amigo é Rui Costa, um boneco vestido com o equipamento da seleção nacional e que usa o número 10. «Ele nasceu no dia da abertura do Euro 2004», brinca a mãe. «Deve ser daí que vem esta paixão toda.»
O que faz um miúdo de 10 anos gostar de futebol? E o que faz um adulto projetar tanta emoção num jogo de bola? «Depois de muitos anos a estudar a dimensão sociológica da paixão pelo futebol, julgo que esta se prende acima de tudo com duas ordens de razões: uma relacionada com as emoções e outra com as identidades, e as duas acabam por funcionar em conjunto», explica o sociólogo João Nuno Coelho, cujas investigações na área do futebol lhe valeram experiências tão variadas como a participação no programa televisivo Liga dos Últimos ou o Prémio Jovem Cientista Social de Língua Portuguesa, da Universidade de Coimbra. O futebol, pelas próprias caraterísticas do jogo, envolve emocionalmente os adeptos mais do que qualquer outro jogo. «Sobretudo por causa da imprevisibilidade, a alternância entre ataque e defesa, o confronto físico, a disposição do público no estádio e a raridade dos golos.»
Mas existe outra dimensão determinante para explicar o fenómeno futebolístico. «Tomamos partido por um dos contendores, habitualmente fruto da identificação social que temos com o mesmo», continua Coelho. «O futebol pode dar ao indivíduo um sentido de pertença, de um conjunto com o qual se sofre e exulta em comunhão.» Foi afinal a isto que o sociólogo alemão Norbert Elias chamou o descontrolo controlado das emoções. Para ele, o futebol satisfaz a busca de excitação nas sociedades ocidentais que, mercê de um processo civilizacional de controlo progressivo das emoções, deixaram de se entusiasmar.
Cláudia Marques Santos, por exemplo, é toda uma improbabilidade. Esta jornalista, especializada em cultura urbana, também é apaixonada por futebol. «No meu caso, não há qualquer influência familiar, porque os meus pais nunca foram grandes adeptos de bola. Nasci na Alemanha, vim para Portugal aos 6 anos e já tinha algum interesse pelo jogo.» Mas as memórias mais fortes são de 1986, do Mundial do México. Via todos os jogos que podia, mesmo depois de Portugal ser eliminado. E sabe recitar religiosamente o hino da seleção, Vamos Lá Cambada, de Herman José.
Cláudia era a miúda que chegou de fora a uma escola nova sem quase falar português – e admite de caras que o futebol ajudou à integração. «Eu era a única rapariga a discutir futebol, e era a única pessoa do FCP no universo de Torres Vedras, onde a maioria era benfiquista e o resto era do Sporting.» Diz que é do contra, que sempre foi do contra. E que foi por isso que escolheu o clube nortenho. «E também pela cor do equipamento, ainda hoje acho aquele tom de azul único.» A sua página de Facebook dá azo a discussões acesas sobre o desporto-rei, filmes de autor e música de reminiscências punk.
Cláudia gosta tanto de futebol que é capaz de passar uma tarde de sábado a ver um Irão-Austrália. «O jogo em si é entusiasmante, mas também gosto muito da rivalidade, é isso que faz do futebol o futebol. Há um lado irracional em que quem ganha uma discussão não é quem tem razão, é quem tem o melhor argumento.» Por isso adora aquilo a que cham «provocação com boa onda». Diz que, no meio intelectual onde se move, há muitos adeptos fervorosos, mas também há muita gente que rejeita linearmente o futebol. «Provavelmente por haver uma linha de respeito que às vezes é passada.» Ela não a passa. O cachecol que usa, e o único que alguma vez usará, foi-lhe oferecido pela Rita e pela Lina, duas colegas de faculdade. Ambas são benfiquistas.
Nuno Domingos, investigador do Instituto de Ciências Sociais, especializado nas questões antropológicas do futebol, diz que o excesso de mediatização cria uma sobranceria de algumas elites. «O futebol está historicamente vinculado a uma cultura popular e as classes educadas sempre tiveram mais opções de manifestação e congregação.» Pode haver também uma reação à homogeneidade deste desporto, já que «o futebol se tornou tão evidente nas conversas quotidianas que se criou uma pressão social para ganhar conhecimento sobre o jogo.» A narrativa futebolística tem de ser dominada, o jogo tem de ser compreendido por quem quer fazer parte do grupo. O sociólogo João Nuno Coelho alinha pela mesma batuta: «O futebol tornou-se no último século numa das formas socioculturais mais significativas da modernidade. Não existe um fenómeno cultural com o seu peso. E também permite, de forma socialmente aceite, a transgressão de algumas normas de comportamento. Permite aos adultos voltarem a ser crianças.»
Um estudo de 2011 da Universidade do Nebrasca considerava que a paixão pelo futebol não tinha paralelo com nenhum outro desporto no mundo. Mesmo em países onde o desporto é pouco desenvolvido, como nos asiáticos, a projeção de emoções sobre o jogo e os jogadores é uma constante. A única exceção à regra é precisamente os Estados Unidos. E a explicação para o fenómeno foi encontrada por Franklin Foer, o jornalista que escreveu o best-seller How Soccer Explains The World: «Até aos anos trinta, o futebol era extremamente popular. O New Deal americano, que tentou relançar a economia do país depois da Grande Depressão, criou a necessidade de uma identidade nacional, que o poder explorou criando a ideia de desportos patrióticos. Primeiro o basebol, depois o basquetebol e por fim o hóquei.»
É bem capaz de ser verdade que um americano vibre e perca o controlo a ver um jogo da NBA tanto quanto um português em Alvalade ou um brasileiro no Maracanã. É, já se viu, uma paixão descontrolada, em que se podem passar alguns limites. E é por isso que Henrique Costa, no dia em que assistia ao jogo do Benfica com a Juventus para a Liga Europa, não foi repreendido quando gritou «apoiado», depois de um adepto ao seu lado ter chamado nomes à progenitora do árbitro. A mãe ainda lhe abriu os olhos em reprimenda, mas ele prontificou-se a contestar: «Então, mãe, tu disseste que eu não podia dizer palavrões, mas isso não quer dizer que não possa concordar com eles, pois não?»