Dizem-nos que a meritocracia é que é. A fonte da justiça laboral. Não poderia concordar mais. Que se implante, portanto, a meritocracia na democracia portuguesa. Mas que não se exclua ninguém ou nenhuma profissão. Mesmo que não se considere o que se faz como profissão, mas como paixão ou dever cívico, que se inclua, então, essa paixão ou dever nos méritos da meritocracia.
Há uma semana celebrou-se a implantação da República em Portugal, mas a verdade é que os seus valores tardam em implantar-se definitivamente nos nossos gestos e actos do dia-a-dia. Alguns traços do regime autoritário que veio substituir a República de 1910 e que se impôs até 1974 ainda se fazem sentir na democracia portuguesa. O meio laboral não é excepção. Da minha experiência como trabalhadora por conta de outrem, às vezes parece ser a norma. Principalmente quando converso com amigos que trabalham inseridos noutras culturas laborais, como por exemplo as culturas laborais do Norte da Europa.
Há um maior respeito pelo trabalhador, em primeiro lugar. Coisa que não sinto que haja em grande parte por aqui. Na forma como se constroem as relações hierárquicas, sobretudo, na forma como se organiza o trabalho, também. E, principalmente, no valor material que se dá ao seu esforço. Tanto em termos de salário como de regalias. Nem me venham com os argumentos-tipo de economistas que sabem tudo sobre números e nada sobre psicologia. Não há produtividade que justifique salários e regalias maiores, dizem. Mas falham em apontar a causa dessa falta de produtividade, óbvia para quem quer que viva numa cultura de mérito e valorização do trabalho: a injustiça.
Se há uma diferença brutal entre o salário de um trabalhador e o salário do seu chefe, então pensar-se-ia que as responsabilidades do último seriam muitíssimo mais pesadas do que as do primeiro. No entanto, na nossa cultura laboral, não é assim: os chefes nunca assumem responsabilidade pelas decisões erradas que tomam ou pelas decisões dos seus empregados.
Por isso é que vivemos num país em que todos têm medo de tomar alguma decisão sem consultar o seu chefe primeiro, não vá a coisa correr mal. Porque se corre mal já se sabe o que vai acontecer: as responsabilidades serão sempre imputadas a si e não ao capitão do navio. Um pouco como a situação do Costa Concordia, mas passada para a realidade portuguesa. Quem tem as maiores responsabilidades não as assume quando as coisas correm mal. E esse é um dos grandes problemas que originam tantos outros que inquinam a transformação de Portugal num país funcional.
Mas o que se pode esperar quando os piores exemplos vêm de quem nos governa? Durante anos, independentemente da cor política ou do governo em vigência, sempre que acontece alguma coisa grave nalgum sector da vida portuguesa pela qual se responsabiliza determinado político, muito raramente o mesmo assume as suas responsabilidades. Não é admissível que se queira levar a sério quem não é sério perante o seu trabalho e as suas responsabilidades. Muito menos quem desempenhe cargos públicos e cujas decisões afectem a vida de tantos milhares de pessoas.
É pois com enorme consternação que observo, mais uma vez, que a realidade permanece inalterada. Que os nossos sectores mais sensíveis, como a educação ou a justiça, continuam a não ser levados suficientemente a sério. Que haja esta total inabilidade de se assumir publicamente o erro e de se aceitar as consequências devidas pelo mesmo.
Sacudir a água do capote. Mais do que o desafio do balde de água fria, essa é a verdadeira corrente que se estende por todos os sectores da nossa comunidade.
Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia
Publicado originalmente na edição de 12 de outubro de 2014