E, no entanto, é uma pequena bola

Notícias Magazine

Num livro policial do irlandês Eoin McNamee, inspirado num facto real de 1952, um jovem é acusado da morte da filha de um juiz famoso, esfaqueada com 37 golpes. O rapaz será condena­do, internado num hospício e, em 2000, ilibado. Mas deixem-me voltar quase ao início: no interrogatório, o acusado assobiava. Assobiava os compassos que, desde esse verão de 1952, meio mundo tinha a martelar na cabeça: Blue Tango. No YouTube, qualquer das dezenas de interpretações desse tango inspira comentários nos­tálgicos: «Ah, eu estava em Jacarta, Indonésia, e a rádio passava Blue Tango…» Eoin McNamee chamou ao seu livro Blue Tango.

Blue Tango tocado por orquestras sinfónicas e há Blue Tango interpretado só com instrumentos japoneses, a koto, cítara longa, e o shamisen, banjo de três cordas. A voz que melhor o can­tou foi a da canadiana Gisele MacKenzie, quem o dedilhou com mais fulgor, Liberace, e há versão dançada até com a Cairo Opera Orchestra a acompanhar. Amanda Lear, musa e talvez ex-aman­te de Salvador Dalí, gravou-o com voz grossa para cultivar o boa­to de que era um travesti. E até há argentinos que tocam Blue Tan­go com bandoneón.

O Blue Tango foi composto pelo americano, de pais suecos, Leroy Anderson. Ele nasceu em Cambridge, bairro de Boston, on­de frequentou Harvard. Estudou línguas guturais, alemão, norue­guês e islandês, e acabou por ter sucesso planetário com um géne­ro que é natural de Buenos Aires e Montevideu. Ambas na boca do rio da Prata, ambas reclamando-se do mais célebre cantor de tan­go, Carlos Gardel, que nascera, de facto, em Toulouse, França. O tango andou pelos bairros de casas de madeira, La Boca e San Telmo, e, porteño, serviu-se dos cais e partiu. Que tenha aportado no bostoniano rio Charles era o «caminito» natural.

O meu Blue Tango eu tinha-o guardado sem o saber, como acontece ao que de forma autêntica mais nos marca. Uma tarde, no Waterfront, o cais da Cidade do Cabo, eu estava sentado num hemiciclo aberto aos lagartos. Quero eu dizer, a quem se expõe ao sol para beber, pela pele, uma cidade. Nas minhas costas acabava o meu continente, o Atlântico logo adiante ia encontrar o Índico e a África dobrava. À minha frente, a montanha da Mesa, ainda coberta por uma toalha de nuvens, ia-se destapando para mostrar o seu tampo liso.

Das lojas à volta, com montras expondo ovos de avestruzes pintados, chegava o sândalo de madeiras trabalhadas e, de perto, nas docas secas, ouviam-se berbequins que faziam chispar cascos de na­vio. Nas esquinas do Waterfront, cruzara-me com pequenas bandas de jazz que se vestiam como acabadas de desembarcar de um barco de roda em Nova Orleães e passara por grupos de Iscathamiya, coros de zulus vindos do Norte, dançando de luvas e sapatos de pala, como nos anos 1930. Eu estava disposto à satisfação suave que as disneylân­dias deste mundo me têm proporcionado. Eu já contei isso quando, em 2010, fui à África do Sul cobrir o Mundial de Futebol.

Depois, ao palco da praça subiram uns tipos que agarraram mu­lheres de vestidos rasgados até à coxa. A banda de um búlgaro, Cape Town Tango Ensemble, atirou-se ao Por Una Cabeza, de Carlos Gar­del. À volta, loiros e negros, indianos e coloureds, mestiços trinetos de mestiços interessaram-se pela dança dramática e pelo ritmo sinco­pado. Mas só percebi que aquilo era comigo quando a banda atacou o Blue Tango. A minha prima Marília arrastou-me para o meio da sa­la, éramos garotos e ela insistia em ensinar-me a dançar. Nessa ma­nhã – naquela, sob a montanha da Mesa – eu vira um feixe de tabu­letas: Cidade do Cabo-Luanda, 2836 km, Cidade do Cabo-Buenos Ai­res, 6889 km, Cidade do Cabo-Boston, 12415 km… E um disco Decca, de dois palmos de garoto, juntava-se a um feiticeiro búlgaro e com o azul de um tango apagava o tempo e as distâncias.

[Publicado originalmente na edição de 16 de novembro de 2014]