Descobrir o feminismo num traseiro que abana

Notícias Magazine

É sempre complexa esta coisa do feminismo no mundo do espetáculo. Como chamar a atenção para a igualdade, para os valores intrínsecos das mulheres, quando são os que estão mais à vista os mais fáceis de considerar, avaliar e usar num mundo de aparências como é o dos filmes, da televisão, da música e, até, das passerelles? É neste equilíbrio difícil que vivem as cerimónias e ga­las de entrega de prémios.

Porque, por um lado, há os vestidos, ou a passadeira ver­melha, em linguagem para entendidos. Desfilando sobre a alcati­fa, rolando para as câmaras fotográficas, qualquer grande estre­la de cinema é uma mulher-objeto. Por mais talento que tenha ele estará sempre subalternizado pela sua beleza, glamour ou apenas bom gosto em escolher a roupa (o dela ou o de profissionais que lho emprestam, sendo muito bem pagos por isso).

Esta face mais fútil dos prémios para as estrelas tem-se acentuado nos últimos anos, muito graças ao poder de repetição da internet, que repassa tudo vezes sem conta, nos dias seguintes, em escolhas editadas e preferências várias. «As cinco mais elegan­tes». «Três razões por que a X arrasou». Dos jornais sérios às re­vistas de moda, ninguém resiste à tentação de animar as vistas dos seus leitores com as mulheres mais belas do mundo – e, ainda por cima, com a cobertura moral da ideia de que são também as mais talentosas.

Mas, nesta semana, tudo foi diferente. E a questão femi­nina saltou para os holofotes. Para além do habitual decote desta, cor do vestido daquela, tendência das transparências, fato saia e blusa da outra, tudo muito glamoroso e certinho, na inovação controlada e profissional de que vive a indústria audiovisual americana, houve… bem, para vos contar as coisas como elas são realmente tenho de dizer que houve dois rabos. O da atriz Sofia Vergara, nos Emmys, e o da cantora Beyoncé nos MTV Music Vi­deo Awards. E o que muda tudo é a explicação da ligação pouco frequente entre estes dois rabos – e estes são dos que podem bem ostentar o epíteto – e o feminismo. E que talvez ajude a mudar um pouco a ordem natural das coisas.

Galardoada com um prémio de carreira, a cantora abanou o seu em frente à palavra Feminismo, escrita a luz, no palco em que cantava um sample com as palavras da escritora ni­geriana Chimamanda Ngozi Adichie sobre todos termos de ser feministas, por cima da canção Flawless. O de Sofia Vergara fi­cou à vista de todos enquanto a atriz rodava numa plataforma giratória e o presidente da Academia das Artes e Ciências Tele­visivas, Bruce Rosenblum, discursava sobre… Sobre o quê? Pois, ninguém conseguiu concentrar-se o suficiente para saber, entre os admirados e os estupefactos com uma ironia que foi para além das marcas.

Num ambiente propício à futilidade – e bem, que uma ceri­mónia é uma festa e não um local para se discutirem ideias – es­tes dois rabos acabaram por ser o mote para uma discussão filo­sófica: pode-se ser feminista e ter um belo rabo? Beyoncé pode achar que sim. Vergara talvez mostre que não. Choveram tweets pró e contra, vieram as sufragistas opor-se às pós-feministas… Mas isso, na verdade, não interessa muito. O que interessa é que falar do assunto, e desta forma, digamos, fresca, já é um sinal de civilização. O que não é pouco, por estes dias em que metade do mundo vive sob a ameaça de ter de cobrir a sua bela cabeça.

Publicado originalmente na edição de 31 de agosto de 2014