Das grandezas do fado, maior ou menor

Notícias Magazine

Eu tinha 22 anos e não gostava de fado. Nos anos 1990, com es­sa idade, não era suposto – não sei se se lembram, mas era assim até há bem pouco tempo. Eu começara a trabalhar no jornalismo, na secção de cultura do Diário de Notícias, e tinham-me posto em agenda uma entrevista ao Carlos do Carmo, por ocasião do con­certo que comemorava os seus 30 anos de carreira. Nos anos 1990, com essa idade e esse tempo de jornalismo, não se torcia o nariz a nenhum serviço. E, apesar de eu não gostar de fado, essa regra, e a curiosidade – muita – que me fez ser jornalista, levaram-me à entrevista com os olhos e a mente abertos com que chegava a qual­quer assunto.

Li tudo o que havia para ler sobre o Carlos do Carmo. Ouvi to­dos os seus discos. E quando fui para a entrevista, que decorreu na sua casa da Avenida EUA, em Lisboa, estava rendida. Ao fado, mas, nessa altura ainda, sobretudo ao homem que ajudara a trans­formá-lo em algo popular, mas culto. O homem que quebrara os tabus que, por essa altura, sobre ele e sobre o fado ainda pesavam. O crooner de voz cava que não tinha trejeitos metálicos e fez en­trar o fado nos meus jovens ouvidos. Ouvi mil vezes Estrela da Tar­de, Por Morrer Uma Andorinha, Os Putos ou Um Homem na Cidade. E estas três, entre muitas outras, tornaram-se para sempre músi­cas da banda sonora da minha vida.

Roubei-lhes as palavras e versos – do Ary dos Santos, popu­lares, etc. – para cartas de amor. Ideias para crónicas. Toquei-as no rádio do carro, sorrindo. Acompanharam-me o choro em desencontros da vida. Explicaram-me coisas. Ajudaram a tornar outras mais claras. E em todas, todas elas, estava aquela voz tão lisboeta, com os cantinhos virados para cima, num toque de gar­ganta que só os alfacinhas de gema têm.

No outro dia, no regresso mediático de Carlos do Carmo a pro­pósito do Grammy com que foi distinguido pelos seus 50 anos de carreira – e que a entrevista que publicamos hoje é mais um exem­plo – estava ele a cantar na televisão e o meu sobrinho de 4 anos vi­rou a cabeça, deixando momentaneamente os legos com que brin­cava, e disse: «Este é o senhor que canta Lisboa, menina e moça, não é?» Ele nunca o tinha visto, reconheceu-o, ele também, por essa voz inconfundível. Inconfundível é o mínimo que se pode dizer de uma voz e é quase uma ofensa para esta. Esta voz – que me conquistou aos 22 anos, ao Afonso aos 4, e ao mundo inteiro, aos 50 anos de car­reira e 74 de idade do próprio – é muito mais do que isso.

Por tudo isto que contei atrás, olhei com incredulidade para as polémicas que envolveram o prémio do Carlos do Carmo. Mas o que é que interessa se é ele entre cinquenta? Que seja um prémio de carreira e não de um disco? Que outra portuguesa – Elisabete Matos, por acaso também foi capa da Notícias Magazine – também já tenha ganho um galardão destes? Que interessa tudo isso? Que interessa até que Cavaco Silva lhe tenha dado ou não os parabéns?

Conheço o mundo, pequeno e tantas vezes mesquinho, do show business português. Sei das tricas do fado – da pequenez de tamanho que tantas vezes se transforma em pequenez de alma. Avalio, também, o mal que isso lhe faz, ao fado, a Portugal, à canção nacional. Mas reconheço, também, que o fado tem sa­bido sobreviver e mesmo elevar-se além disso. Porque o fado é grande, muito maior do que todos os que o interpretam – até mes­mo maior do que Amália, e se ela foi, e é, enorme.

Gente que o torna grande todos os dias, em cada nota, em cada trino de voz, gente como o Carlos do Carmo que o pode levar ao pal­cos de Los Angeles e às bocas do mundo, é disso que precisamos. É o que o torna maior em grandeza, mesmo quando é menor em tom.

Publicado originalmente na edição de 20 de julho de 2014