
Há tempos, o cronista Roberto Pompeu de Toledo propunha para hino brasileiro o samba-choro Conversa de Botequim, de Noel Rosa. Na verdade, não é conversa, só o cliente fala. Chama «seu garçon» e dispara ordens díspares, exigentes e muitas – mas ordens adoçadas pela gentileza («faça o favor») do falar brasileiro. O prato, que não seja requentado, pão e guardanapo, cigarro e palito, caneta, cinzeiro e o resultado do futebol… E, no fim, que ponha na conta. É tão bom ouvir o português mais bem falado, o gosto pelo substantivo, o deslizar das palavras e do que as une. Ao calarem-se a flauta, o pandeiro e o violão (no YouTube, Chico Buarque canta Conversa de Botequim na Confeitaria Colombo, no Rio), fica a amargura certa de que aquilo não vai durar.
Na esteira de Toledo, proponho para hino americano One Meat Ball, que foi cantado por tantos. Passa-se num restaurante, cenário certo para quem põe vida nas canções. «One meat ball», uma almôndega, é tudo quanto quer um homenzinho que desce e sobe uma rua, contando os cêntimos que tem no bolso: são 15. Entra no restaurante e pede o que só pode pedir, uma almôndega. O empregado faz saber o seu desprezo e encomenda para a cozinha, em dois gritos: «Uma almôndega! Uma almôndega!» O homenzinho gostaria que ela viesse com pão, mas o empregado corta a esperança e pousa-lhe o prato com a sentença: «Uma almôndega só não traz pão.» De novo, uma canção servida pelas maiores das palavras, os substantivos. Mas, desta vez, em americano, é cruel. E, no entanto, quando o coro das Andrews Sisters se cala no último verso, ficamos com a certeza de que aquela canção de tempos difíceis anuncia o dar a volta por cima.
Muitos cantaram One Meat Ball, até a voz de veludo de Bing Crosby, mas a versão das Andrews Sisters foi a mais popular. Apareceu, em 1945, no álbum Rum and Coca-Cola, do outro lado da canção que deu o nome ao disco mais vendido na Segunda Guerra Mundial. Rum and Coca-Cola já anunciava os tempos novos, um calipso sobre o apetite da América pelo seu quintal, no caso a Trinidad, a do melhor rum das Caraíbas. Mas, na faixa contrária, One Meat Ball insistia que a vontade temperava-se no não ter, porque este acicata o querer ter. A almôndega já era uma modinha popular (vinha do século XIX, de estudantes pobres de Harvard) quando foi preparada e servida aos tempos modernos pelo letrista Hy Zaret (1907-2007).
Hy Zaret tem muitas razões para ter andado por cá tanto tempo – uma é ser o autor de Unchained Melody (eu não saberia ter sido adolescente sem ela) – mas a letra que ele escreveu para Dedicated to You é outra coisa. Depois do estômago (One Meat Ball), o coração. Eu era capaz de sugerir para que Dedicated to You passasse a ser o hino universal não fosse o risco de a ouvir na boca de outro ou outra que não fosse Ella Fitzgerald. Dedicated to You é a canção de amor perfeita. As palavras de Hy Zaret são simples, «se eu escrevesse um livro para ti», «esse livro seria o meu coração e eu», e por aí fora. Repete-se «dedicado a ti» e polvilha-se com «beacon» (farol), «twinkling star» (estrela cintilante) e «wondrous» (espantoso). Zaret, o operário das pedreiras fornece o mármore. E Ella trabalha-o.
Ella Fitzgerald ora pronuncia os versos corridos ora esculpe, palavra a palavra, o verso seguinte: «That book would be like my heart and me.» Amarra a última palavra da primeira quadra à primeira palavra da segunda, mas deixa arrastar a última palavra da segunda quadra e desliga-a do que se segue. Imprevisível, Ella, como o amor que canta. Apoia-se numa palavra do meio de um verso para se relançar. Soletra a palavra «twinkling» numa posse quase indecente. E cala-se. Aos 01:22 segundos cala-se para só regressar um minuto e doze segundos depois. A orquestra continua, mas só pensamos: onde está o nosso amor? Ella regressa com as palavras que nos salvam do abismo onde caíamos: «To you», diz. E, nós, voltamos a embarcar: «Porque o teu amor é o farol que ilumina o meu caminho.»
[26-01-2014]