O meu sobrinho Francisco está na segunda classe. Vejo-o atulhado em livros e trabalhos de casa, a decorar o que são poliedros e a preparar-se para estudar frações, a aprender obras literárias – tem umas sete ou oito no programa – e aflito, já aflito, porque vai ter um exame no final do ano. Vejo-o e não reconheço neste menino sério e preocupado da escola o menino das brincadeiras, livre, solto e imaginativo. O Francisco já é duas pessoas – uma na sala de aula e outra no recreio e em casa. E não consigo deixar de pensar que talvez seja muito cedo para isto. Que talvez a escola não devesse ser esse lugar das obrigações mas, pelo menos nestes primeiros anos, devesse ser o lugar confortável onde os meninos vão aprender a aprender.
Uma parte dos leitores desta crónica já estará a vociferar contra ela. A dizer que chega de eduquês e essa patranha ideológica muito sixties que instituiu o laxismo e a tolerância. Que é preciso fazer exames e testar os alunos. Que é preciso que eles saibam o valor do trabalho desde pequeninos. Que é essa a competição que vão encontrar no futuro cada vez mais globalizado – entre os chineses obedientes, rigorosos, os nórdicos bons alunos e os americanos tecnológicos.
Eu sei que o mundo mudou, mas isso aconteceu em muitos sentidos. Não apenas nos que parecem ter sido escolhidos pelo Ministério da Educação para traçar as metas de um ensino cada vez mais livresco, cada vez menos participativo, cada vez mais reativo e menos criativo. Ora o mundo que eu conheço, e que muda aos meus olhos – e estes são os olhos treinados de jornalista – é um em que o que os empregadores mais valorizam num futuro empregado é a sua capacidade criativa, iniciativa e organizacional. É isso que nos dizem todos os estudos e é isso que a geração dos millennials trouxe para ficar.
Mas, como dizia, na semana passada, numa entrevista a esta revista, o professor espanhol Fernando Alberca, «a escola está feita para o hemisfério esquerdo do cérebro, que é lógico, sequencial, analítico, e exclui da avaliação o hemisfério direito, o da intuição e imaginação». Neste sentido, o que a escola primária devia fazer era ensinar «a aprender a ler melhor, a expressar-nos, a refletir, a calcular, a observar, a escutar». Tenho a certeza de que, se isso acontecesse, tudo seria diferente.
Trago este assunto aqui, nesta semana, porque é nisto que tenho pensado enquanto observo, do meu sofá, o caos em que se transformou o início deste ano letivo e a atenção que tem tido nos meios de comunicação social. Essa atenção é caixa de ressonância da preocupação com o tema por parte, principalmente, dos sindicatos. E eu, que sei bem o que significa esta confusão para o estado já depauperado do ensino em Portugal, não consigo deixar de pensar que gostava de ver o mesmo empenhamento na luta por um melhor ensino. E que um melhor ensino passa muito pela colocação dos professores mas está, a montante e a jusante disso, nos programas e no que queremos que a escola ensine aos nossos filhos. Não é à toa que, noutros países com melhores elites, elas se preocupam e fazem fundações dedicadas a este assunto fundamental: a escola. Porque, como sabem Bill Gates ou Warren Buffet, está na base desta uma questão profundamente ideológica: que sociedade queremos formar. E que disso, sim, disso ninguém fala.
Publicado originalmente na edição de 12 de outubro de 2014