O jornal londrino The Times fez um artigo sobre o estudo americano «The Sound of Power: Conveying and Detecting Hierarchical Rank Through Voice». Desculpem o extenso título que, resumido, fala da relação entre o poder e a voz. Desde aquele anúncio antigo de perfume, em que alguém, que não me lembro se loura ou morena mas com a tonalidade exata, perante a indagação vaga de «Loulou…» deu a resposta fundamental e histórica «oui, c’est moi…» Desde aí, o mundo ficou definido entre AV e DV, antes e depois da voz. Tal como os títulos dos estudos universitários têm de ser longos para se imporem, a nossa voz também tem de ter os seus truques para nos ajudar a subir, ou deitar, na sociedade.
Nada que eu já não soubesse. Adolescente, eu punha uma voz cava, apropriada para quem quer convencer (pelo menos era o que prometia um artigo que lera nas Seleções do Reader’s Digest). Com certos colegas, eu usava essa voz para ser ouvido com respeito; com certas colegas, entoava para elas se despirem (naquele tempo, significava debruçar-se em casta oferta). Tive algum sucesso, mas contraditório. Na praia, por exemplo, acontecia, ainda acabados de chegar e de calções, os rapazes porem-se logo de fato de banho e correrem a mergulhar, mal eu, sotto voce, começava a dissertar sobre o último romance que tinha lido – eles despiam-se para não me ouvir. Já as raparigas, e não foi uma nem duas, bebiam o meu tom profundo e grave, quando eu fornecia, a pedido delas, o telefone do Aurélio, o mais bonito da turma – elas derretiam-se comigo para fugir para outro… Percebi cedo, pois, o charme e a influência que uma voz podia ter – embora percebendo também que eram necessários alguns ajustes para acertar nos alvos.
Quem percebeu também que a voz tinha de se pôr à diapasão das ambições foi Margaret Thatcher, disse-me o The Times ao apresentar o estudo americano. Ela tinha a autoridade, ela tinha o momento histórico e ela tinha a vontade, mas exprimia toda essa força com gritos de dona de casa. Então, o Partido Conservador contratou Laurence Olivier para dar aulas de dicção a Thatcher. Foi bem-sucedido (ao contrário de Glória de Matos que tentou o mesmo com Cavaco Silva).
A Dama de Ferro foi trabalhada como em material nobre, passou a soar como se trouxesse «harmonia para a discórdia» e «fé para dúvida», frases que ela pronunciou quando pela primeira vez foi eleita primeira-ministra, em 1979. As belas palavras são, de facto, de São Francisco de Assis, mas algum mérito deve ter a forma como ela as disse porque não consta no currículo do santo ter conseguido chegar ao n.º 10 de Downing Street. Falando, ela era «the lady’s not for turning», como também ela disse de si própria em 1980 («a senhora que não é de mudar»). Ora a frase também não era original, imitava o título de uma peça teatral do após-guerra, The Lady’s not for Burning (A Senhora não É para Queimar). Então, se ela dizia o que já outros haviam dito, o que marcava tanto as suas palavras? A forma de as pronunciar. A forma, a (nova) voz de Margaret Thatcher, dava-lhe poder e estatuto.
E também acontece o caminho inverso, diz o tal estudo da Universidade de San Diego: ter poder muda a forma de nós falarmos. O som da hierarquia, real ou pretendida, é audível: «Dos generais dirigindo-se aos soldados no campo de batalha aos gritos dos babuínos chefes avisando os competidores para recuarem, aqueles com autoridade parecem falar com voz diferente.» O The Times lembra que Hillary Clinton, para ganhar importância, acentua a sua pronúncia do Sul dos Estados Unidos quando fala para audiências negras. E todos conhecemos a invenção e o incremento, em só duas gerações, da pronúncia de Cascais. Só pode ser pela procura de poder, real ou aparente, por parte de dezenas de milhares de cidadãos. Porque se fosse para se fazerem passar por sobrinhos de Champalimaud (ouvi uma vez o Herman José dar essa explicação), já vão tarde para a herança.
[Publicado originalmente na edição de 7 de dezembro de 2014]