O chamamento para padre manifestou-se cedo na vida de Manuel de Nóbrega. Tal como o jeito para a botânica, que lhe permitiu descobrir novas espécies e plantas consideradas extintas na Madeira. Este apaixonado pela natureza é uma das maiores referências vivas da ecologia.
Manuel de Nóbrega costuma dizer que ninguém sabe se tem apetência para algo antes de experimentar e, no seu caso, não está a exagerar. Aos 12 anos, nas primeiras férias de Natal depois de entrar no Seminário do Funchal, foi apresentado a uma planta típica da estrada que fazia para ir de casa à escola. «O reitor cónego Jaime de Gouveia Barreto era um grande naturalista, levou-me ao Museu de História Natural que havia no seminário e disse-me para atentar naquele musgo tão interessante, Anacolia webbii», recorda o padre, hoje com 86 anos. O menino não só identificou e lhe levou um exemplar da espécie quando a escola recomeçou, como outras que cresciam na sua freguesia de Curral das Freiras, na ilha da Madeira. O reitor nunca mais o largou, prevendo talvez que Manuel estava fadado para outros feitos na botânica – como descobrir plantas consideradas extintas na natureza, raridades protegidas em todo o mundo e novas espécies para a ciência.
«Era um fanático já naquela altura. Andava sempre à cata, procurando o que era novo com o mesmo afã com que outros procurariam pedras preciosas», revela o padre, ordenado sacerdote aos 27 anos com o condão de se entregar por igual às pessoas e ao verde – o Anacolia webbii foi apenas a introdução para uma história maior como botânico conceituado. «A freguesia onde nasci é um lugar isolado, rochoso, de difícil acesso. Os naturalistas tinham andado muito pouco por lá.» A aspereza de Curral das Freiras não impediu o rapazinho de colher no local espécies novas para a Madeira. Afinal, estava, habituado a descortinar vegetação onde outros viam calhaus. «Quanto mais mexia, mais descobria outras coisas. Ainda agora, que já não posso fazer nada disso, tenho essa curiosidade.» Antes de ter completado 14 anos, Manuel de Nóbrega já tinha publicações suas na revista científica Brotéria, na secção de Ciências Naturais: o jesuíta Afonso Luisier, ligado ao seminário e diretor da publicação, além de autor de vários estudos na Madeira sobre as muscíneas (grupo de plantas que inclui os musgos), reconheceu a importância dos achados do garoto e deu-lhes a visibilidade merecida. «Acabou por ser um professor para mim, tal como antes tinha sido o reitor Barreto», garante o padre, hoje reformado, agradecido por esta educação que foi recebendo ao longo da sua vida dedicada a estudar o coberto vegetal da ilha, com uma flora rica em plantas únicas no mundo. «Aqui, cada vale é um museu por desvendar. Há riquezas incalculáveis para explorar, inclusive de caráter químico. Em laboratório seriam medicina segura para doenças como a tuberculose ou o cancro.»
Manuel fez trabalho de campo com o diocesano José Gonçalves da Costa, naturalista e investigador madeirense. Em pesquisas no arquipélago, acompanhou durante dois meses um especialista do Museu de História Natural de Estocolmo, Herman Persson, com quem encontrou novidades relacionadas com plantas criptogâmicas (as que têm os órgãos sexuais ocultos, como o bolor) do grupo das hepáticas (assim chamadas por se acreditar que podiam curar doenças ligadas ao fígado). Esquadrinhou serras, escarpas, vales, das Selvagens aos ilhéus circundantes de Porto Santo, sem esquecer as Desertas. Descobriu espécies novas para a ciência, como os musgos Nobregaea latinervis e Fissidens nobreganus e duas plantas vasculares (Cyperus argilincola e Veronica maderensis), além da espécie protegida em todo o mundo Apium repens. Em homenagem a Manuel de Nóbrega, duas espécies de musgos endémicas da Madeira foram descritas para a ciência: Nobregae laetinervis e Fissidens nobreganus.
«Há uma coisa muito importante para nós, madeirenses, que é a ecologia, a ciência que estuda a interação dos organismos com o seu ambiente. E as plantas características do arquipélago têm um grande valor a vários níveis: algumas espécies estão presentes desde os primórdios de formação da ilha da Madeira», explica o sacerdote, que chegou a ser pároco de sete freguesias sem nunca largar as suas explorações. Andou de tal modo entusiasmado com este contributo histórico da vegetação que, em abril de 1998, organizou um herbário pessoal em criptogamia e plantas fanerogâmicas (as que têm órgãos sexuais visíveis) muito raras, a par de dados geológicos importantes para a cronologia do arquipélago madeirense – nesse mesmo ano, foi condecorado com a Ordem de Mérito pelo então presidente da República Jorge Sampaio.
Antes, de 1984 a 1998, Manuel de Nóbrega já havia instalado o Museu de História Natural do Seminário do Funchal no Jardim Botânico da Madeira, onde criou o herbário de plantas criptogâmicas, desenvolveu estudos botânicos e incrementou as coleções do herbário e do museu. O ano passado, já sem poder aventurar-se no trabalho de campo, fez a exposição e o livro Ruralidade, mostrando como os madeirenses interagem positivamente com o seu património natural. «Encontrar certas coisas na natureza foi insuperável para mim», reconhece, emocionado com as memórias: «Um dia, estava eu em pesquisas na região de Ribeira da Janela, a vegetação cortada por alguém, e deparei-me com uma planta da família das Solanaceae que me fez cair no chão de surpresa, quase em choque, porque toda a gente a julgava extinta na ilha.»
Depois disso descobriu outra planta que também se pensava desaparecida, o fustete, muito apreciado nos embutidos madeirenses dourados e acetinados, e tratou de anotar os seus conhecimentos da flora para um uso sustentável no futuro: as azedas para combater a azia e fazer sopa; o musgo esfagno com propriedades antibióticas; o piorno para controlar a diabetes. «Desde há 60 anos que a ilha está a sofrer com a introdução de vegetação exótica, como o eucalipto, que altera por completo a paisagem, o equilíbrio dos caudais das nascentes e aumenta os riscos de incêndio. Ainda espero que se tomem cuidados muito precisos com ela.» Um homem pode ter vários chamamentos na vida e o padre assume que pensar e salvaguardar a vida secreta das plantas da Madeira é um dos seus.