A pior solidão é não saber estar sozinho

Notícias Magazine

Não estamos sozinhos. A frase é utilizada quando se pondera poder haver vida fora da Terra. Um universo tão grande que não sabemos onde começa ou acaba ou sequer se estes concei­tos fazem sentido, certamente conterá mais vida para além desta que conhecemos aqui no planeta azul, pensamos, entusiasmados.

Não sei por que somos assim: tão inquietos que andamos sem­pre a olhar para o desconhecido, à procura de o conhecer melhor. É uma inquietação bonita e certamente a base de tantas descobertas e criações que nos são vitais hoje. O que por vezes frustra é perceber que ao olhar para cima, para a linha do horizonte que alcançamos, querendo conhecer o que não conseguimos ainda alcançar, esquecemo-nos de olhar para o lado e, principalmente, para dentro.

Quantos de nós não se conhecem? Quantos fogem desses momentos em que ficamos a sós connosco, porque não sabem ou temem o que podem encontrar para lá da sua linha de horizonte? Uma das tragédias humanas será, para mim, essa: o eterno escapismo, que encontra na sociedade de hoje um terreno fértil para prosperar, alimentando a ignorância e desconhecimento que temos de nós mesmos. O que é tão mais grave quanto o facto de não nos conseguirmos conhecer a nós levar a que nunca possa­mos conhecer o outro.

Alguns dirão que inúmeros filósofos já concluíram que conhecer outra coisa que não a própria realidade subjectiva é impossível, pelo que, tentar conhecer o outro, é um exercício de ficção. Se formos todos alienígenas uns em relação aos outros, seres de planetas diferentes que coabitam no mesmo espaço, então não há mesmo nada a fazer. Andamos a inventar palavras como “comunidade”, “social”, “amor” para nos irmos enganando e tornando a vida um pouco menos inóspita e insuportável. Mas se há alguma esperança de que possamos estabelecer ligações fortes uns com os outros, baseadas em empatia, então andamos a construir o mundo errado. Um mundo que se orienta cada vez mais para o culto do singular em detrimento da pluralidade.

Uma das consequências imediatas é a chamada «pescadinha de rabo na boca»: a dificuldade da tarefa de compreensão de mim e do outro leva a que me concentre apenas no superficial e imediato, o que leva a que consiga compreender o mundo com cada vez maior dificuldade, procurando cada vez mais apenas a satisfação e gratificação imediatas. E depois, tudo o resto passa a ser consequência deste ciclo.

O lugar que a arte e a cultura ocupam no mundo de hoje é quase secundário relativamente ao lugar que a boçalidade ocupa. Diria mesmo que a última está a substituir as primeiras. Se não, pensemos em quantos programas dedicados à cultura temos nos meios de comunicação maciços.

Dizem-nos estes que não lhe dão espaço porque perdem audiências, porque as pessoas não querem ouvir música tocada ao vivo por profissionais, ou porque não têm interesse em programas de entrevistas sérios e sem distracções. Literatura, filosofia, histó­ria, dança, teatro e cinema são para esquecer, definitivamente.

As humanidades esquecidas pela humanidade. Se a huma­nidade se esquece de si mesma, para que quer saber se está acompanhada no universo? Para quê estabelecer ligações tão longínquas se não as queremos estabelecer quando estão a menos de um metro de nós?

E, sem a música, a literatura, a filosofia, a história, o teatro, o cinema, a dança, o que teremos para mostrar a esses seres da ga­láxia? Pontes e arranha-céus? Taxas de juro e botox?

Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia

[Publicado originalmente a 14 de dezembro de 2014]