A perspectiva das coisas

Notícias Magazine

Nunca tinha pensado nisso. Que a nossa perspectiva das coisas, não no sentido de uma perspectiva filosófica, mas no sentido de uma perspectiva vi­sual, física, das coisas, é muito diferente quando somos crianças. O que vive­mos e as memórias que criamos estão dimensionadas à nossa escala da altura. Tudo nos parece grande, enorme. As salas de aula, as carteiras, o recreio da escola.

Há um encantamento que se perde quando se volta onde se foi crian­ça, depois de muitos anos. Percebemos que tudo é muito mais pequeno e mais reduzido do que aquilo que nos lembrávamos. Só que, nem por isso, o que se reduz se menoriza. Foi o que aprendi na passada semana.

A escola primária onde estudei organizou o dia do colégio pela primeira vez. E quis convidar um ex-aluno que se houvesse distinguido na sua área pro­fissional para falar com os alunos. Lembraram-se de mim, o que me deixou des­de logo muito feliz e honrada. Não seria a primeira vez que iria a uma escola fa­lar com os alunos acerca do meu percurso e da importância que os estudos e a experiência escolar tiveram na minha vida. Mas fazê-lo na nossa antiga escola tem outro gosto, porque há um laço emocional muito forte criado a partir de algumas das memórias que foram basilares na construção de nós mesmos.

Assim que lá entrei pela primeira vez em muitos anos, vi que a grandeza daqueles tempos não estava no tamanho das salas, ou do recreio, mas na força que as primeiras impressões do mundo têm em nós. Enquanto ia falando com os alunos, ia recordando algumas histórias que, percebi então, não ficaram re­gistadas por acaso na minha memória. Elas ali perduraram com o intuito de aju­dar a criar uma história maior, uma estrutura orgânica, viva, a que chamamos de personalidade. A que chamo de «eu».

Há uma parte de mim que, quer queira ou não, se formou ali e para sem­pre ali ficará «presa». Nem tudo o que me prende àquela escola é bonito e idílico, como todos gostaríamos que a infância fosse. Passei por muitas coi­sas difíceis naquele recreio, naquelas salas de aula. Era dessas coisas que me lembrava com maior nitidez.

Ao voltar, percebi que houve mais história para lá dessas histórias. Hou­ve algo profundo e, porventura, sagrado. Aquela escola, a imensa comunida­de que ali era, na minha altura, e que ali é, hoje, faz parte de mim e a ela estarei para sempre ligada.

Os bancos de jardim que ainda sobrevivem no recreio, já não me lem­brava deles. Mas, ao vê-los, foi como se nunca tivessem saído da minha me­mória. Lembrava-me exactamente de como era frio o metal de que eram fei­tos, quando passava os meus dedos pelas curvas dos seus adornos enquanto esperava pelas aulas, de manhã, ou pelos meus avós, ao final do dia. O refei­tório, que me parecia tão grande, era, afinal, um refeitório miniatura, com as suas minicadeiras e minimesas. Mas o cheiro, esse era o mesmo. Os chei­ros que me povoavam a memória, sem que eu soubesse, regressaram assim que voltei a entrar por aquelas portas.

Aquele dia pode ter sido um dia especial para os alunos, que viram a sua rotina alterada em função de um convidado que viria conversar com eles. Mas foi, sobretudo, um dia especial para mim. Tanta ponta solta se atou, tan­tas peças se encaixaram naquele dia, enquanto contava aos alunos como foi a minha vida no nosso colégio. Ao passar por aqueles cantos todos, das salas e da memória, percebi que nunca me tinha verdadeiramente ausentado. Tu­do estava diferente e tudo era igual. Não houve estranhamento, apenas encantamento.

Sim, há um encantamento que se perde ao ver que o que era grande é, afinal, pequeno. Mas há, sobretudo, um encantamento que se ganha ao perce­ber que o que é maior que isso tudo é a forma como os lugares em que vivemos continuam a viver em nós mesmo que não o saibamos, ajudando a construir, pedra por pedra, esse corpo que habitamos e a quem chamamos de «eu».

Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia

[Publicado originalmente na edição de 7 de dezembro de 2014]