A nossa alma dança?

Publicou recentemente o seu décimo livro, O Bailado da Alma. Passeia-se entre as neurociências e a filosofia para questionar algumas verdades incontestadas e obrigar a repensar a seguinte pergunta: «O que é a mente, para além do corpo?» O psiquiatra Pio de Abreu diz que não é apenas no nosso corpo que podemos encontrá-la, mas também no mundo à nossa volta, nas palavras e, sobretudo, na relação com os outros.

Defende no seu livro que o império do racio­cínio em que vivemos, apesar das vantagens que nos trouxe, se arrisca a ofuscar a própria vida e o nosso futuro. Porquê?
_Não sou contra o raciocínio, sou antes seu adepto. Mas o raciocínio não é a única fon­te do conhecimento. Hoje, o raciocínio con­funde-se com a tecnologia e os computado­res já raciocinam por nós. Muitas vezes de­mo-nos conta de que criámos monstros sem retorno, como a destruição ecológica e nu­clear, e nem sequer são boas as nossas pre­visões racionais sobre o futuro. Falta-nos a utopia que nasce da esperança, que nem sempre é muito lógica. Assim, é preciso pa­rar um pouco para perceber o significado de toda esta evolução recente.
E como podemos percebê-lo?
_ Teremos de recorrer a outra fonte de co­nhecimento que não nasceu do raciocínio, mas do próprio desenvolvimento e evo­lução da vida. Nos animais, podemos fa­lar dos instintos. Nos humanos, é muito mais do que isso, é uma espécie de instin­to que se tornou desinteressado, a que po­demos chamar intuição. Sem darmos por isso, usamos constantemente esta capaci­dade, que é relacional, mas não a temos em boa conta. Porque não pensar melhor nela?
Devemos deixar que o instinto e a intuição ocupem mais espaço na nossa vida?
_ Os instintos fazem parte de uma moral biológica que nem sempre se coaduna com a moral social. É preciso dar-lhes atenção, mas o desenvolvimento infantil e a educa­ção consistem na modificação e socialização desses instintos primários. Assim, modifica­dos e socializados, incluem a aprendizagem de automatismos e rotinas e transformam–se na intuição humana. Mas é preciso sa­ber o que é a intuição genuína, porque mui­tas vezes ela adultera-se na forma de precon­ceito. Este livro tenta esclarecer este ponto.
Como?
_ Sem chegar a esclarecimentos definiti­vos, assume-se como um começo. Um co­meço da apreciação de novas formas de co­nhecimento. Algumas formas de contem­plação adotadas pelos orientais, em que a mente se deixa fundir com a natureza con­templada, mas também conhecimentos que nos chegam com grande evidência sem que consigamos dizer porquê podem ser formas de intuição. E esses conhecimentos são potencialmente controladores do frenesim tecnológico.
Define uma relação como uma sincronia, fi­siológica e mental, entre as pessoas. Atual­mente, será a fraca ligação que estabelece­mos com os outros a culpada de uma mente pouco saudável?
_ Sem dúvida, esse é um ponto decisivo. É preciso largar o computador, saltar para a rua e olharmo-nos nos olhos. Sem o olhar dos outros deixamos de ser humanos – e prestamo-nos a ser desumanos: o assassino não olha os olhos da vítima. É o encontro in­terpessoal que funda a humanidade.
O nosso lado racional e prático leva-nos hoje a olhar as relações mais do ponto de vista «con­tratual» – com deveres e obrigações – do que à luz das emoções e dos afetos?
_ Existem muitos tipos de relações, hoje am­plificadas com os telemóveis e a internet. As relações formais ou contratuais sempre exis­tiram, mas nem sempre são aquelas que nos preenchem a vida. As relações significativas são às vezes surpreendentes: enquanto exis­tem nem sequer são assumidas porque estão lá. Só nos damos conta da sua importância quando as perdemos.
Avisa logo no prólogo que o livro vai contra o pensamento dominante. Qual é o pensamento dominante?
_ O pensamento dominante é cartesiano. Existe a matéria e o espírito, o corpo e a al­ma. O funcionamento do corpo era, para Descartes, um problema de mecânica, co­mo o era uma parte importante do funcio­namento da mente. A psiquiatria atual ba­seia-se nessa teoria e acaba por confundir a mente com o cérebro, visto como coisa ma­terial. Mas esta visão tem desvirtuado a psi­quiatria, incapaz de explicar todos os fenó­menos da mente, incluindo os patológicos.
E isso acontece pelo tipo de investigação pelo qual tem optado a neurociência?
_ Muitos neurocientistas têm este pensa­mento reducionista, admitindo, no entan­to, que existem fenómenos inalcançáveis porque pertencem ao domínio espiritual. Na verdade, são dualistas, como Descartes. O grande problema é ver o corpo através da sua matéria, como se este fosse uma fábrica, e não através da sua dinâmica. Na verdade, um corpo vivo é muito mais do que uma fá­brica. É uma máquina pulsátil que se apro­pria da energia para manter um bailado a to­dos os níveis, das proteínas, genes, células, tecidos, órgãos (como o coração, que é o ór­gão mais obviamente pulsátil), ao cérebro, e continuando na relação com outros seres vivos.
E é essa dinâmica que defende que se devia observar?
_ Sim. O que importa estudar é a dinâmi­ca corporal e cerebral e, acima de tudo, os seus diversos ritmos e a sincronização entre eles. A minha questão é introduzir o tempo no nosso entendimento da vida e do mundo. Se víssemos o mundo e a vida através da di­nâmica temporal, não veríamos coisas si­multâneas, mas sim estados variáveis e su­cessivos das coisas. Veríamos que alguns estados parecem repetir-se. Veríamos os ritmos com que aparecem e as dessincroni­zações passageiras seguidas de harmonia. E veríamos que o espaço só se realiza com os encontros. No que respeita ao cérebro, esta­ríamos especialmente atentos, não tanto à sua massa, aos neurónios e aos neurotrans­missores, mas aos impulsos que eles ge­ram em ritmos que se harmonizam ou não. Esse estudo já está a ser feito e aplicado. Hoje é possível conduzir um automóvel te­lecomandado apenas com o pensamento, ou seja, com os ritmos cerebrais captados por um eletroencefalograma.
O que gostaria que os leitores retivessem do seu livro?
_ Primeiro, a recusa da arrogância da ci­ência que pretende explicar tudo, por ve­zes sem fundamento nem metodologias adequadas. Segundo, a admissão que exis­tem certos fenómenos correntes que a ciên­cia ainda não consegue explicar. Terceiro, o apontar de caminhos para uma metodolo­gia científica que possa estudar estes fenó­menos, de modo que não sejam remetidos para os diversos misticismos e ocultismos em voga. Como sempre, a filosofia tem uma palavra a dizer. O dualismo cartesiano tem de ser ultrapassado, e isso pode ser feito atra­vés de uma trilogia que tenha que ver com a matéria, a energia e a informação.
Na capa faz uma pergunta: «O que é a mente, para além do corpo?» O que é?
_ A mente pode ser o corpo, incluindo o cére­bro, mas tem de ser vista pelo lado do tempo e destes ritmos que se sincronizam e harmo­nizam entre si. Os ritmos do próprio corpo sincronizam-se também com os das outras pessoas e, em última análise, com os ritmos dos astros que fazem o dia e a noite, as ma­rés e as estações do ano. Finalmente, a mente humana recorre também às descrições em forma de palavras, escritas ou faladas, bem como a todos os produtos que os humanos produziram para resguardar as suas comu­nidades. Recorre sobretudo aos produtos culturais que se encontram no espaço e que marcam a identidade das pessoas.
E a alma, o que é e onde está, afinal?
_ A alma é a mesma coisa que a mente. Só que a alma tem conotações religiosas e a men­te tem conotações científicas. Mas a ideia de alma é mais abrangente. Primeiro porque é o que nos «anima», depois porque se trans­cende na relação com os outros. E implica al­guma continuidade depois da morte física: a alma alimenta-se dos produtos culturais e também os produz. Mesmo que o corpo desa­pareça, estes produtos vão ficar no mundo e alimentar os nossos descendentes. Além dis­so, existe a memória que os outros têm de nós e que permanece, mesmo que estejamos au­sentes do mundo. Tudo isto tem que ver com a identidade, que se torna mais importante pa­ra uma pessoa do que a própria vida. É pela identidade que os humanos lutam, desespe­ram e rejubilam, quer quando assistem a um campeonato de futebol quer quando entram em guerra. Para resumir, a alma é aquilo que nos marca como pessoas e a marca que nós cá deixamos quando desaparecemos.

QUEM É JOSÉ LUÍS PIO ABREU?
Tem 46 anos de atividade profissional como médico e psiquiatra, nos Hospitais da Universidade de Coimbra. Foi professor associado da Faculdade de Medicina, da qual se aposentou no ano passado. Tem-se dedicado também ao psicodrama e à investigação em psiquiatria. É autor de dez livros, entre eles o best-seller Como Tornar-Se Doente Mental.